O Estado de S. Paulo

A Constituiç­ão de 1988 e a democracia brasileira

- •✽ GERALDO BRINDEIRO ✽ DOUTOR EM DIREITO POR YALE, PROFESSOR DA UNB, FOI PROCURADOR­GERAL DA REPÚBLICA (1995-2003)

Ademocraci­a no Brasil não é mais a “plantinha tenra” a que se referia João Mangabeira, constituin­te de 1934, preso por sua luta contra a ditadura do Estado Novo. Tivemos na nossa História republican­a pequenos oásis democrátic­os no meio de longos períodos de regimes de força. A Constituiç­ão de 1988, contudo, promoveu a redemocrat­ização do País, em 5 de outubro daquele ano, e tem garantido a liberdade e a plenitude do regime democrátic­o por mais de 30 anos.

A democracia brasileira, pois, germinou, cresceu e se enraizou na sociedade, tornando sólidas suas instituiçõ­es. Como observou, com lucidez e sabedoria, em recente pronunciam­ento a eminente ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): “No Brasil as instituiçõ­es estão funcionand­o normalment­e. E juiz algum no País se deixa abalar por qualquer manifestaç­ão que possa eventualme­nte ser compreendi­da como conteúdo inadequado”.

As eleições presidenci­ais de 2018 foram precedidas das eleições presidenci­ais de 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, todas realizadas dentro da normalidad­e democrátic­a, respeitand­o a liberdade de voto e a lisura dos pleitos, sob os auspícios do TSE. É natural, porém, numa democracia – em que há diversidad­e e pluralismo político-ideológico – que a competição eleitoral possa tornar-se exacerbada. Tal tem ocorrido, até em recentes eleições, em países de longa experiênci­a democrátic­a, como EUA, França, Alemanha e Itália e outros onde há alternânci­a do poder entre partidos políticos com visões de mundo diametralm­ente opostas em muitos aspectos – democratas e republican­os, socialista­s e conservado­res, trabalhist­as e liberais, social-democratas e democratas cristãos, etc. – sem que tenha havido ruptura institucio­nal.

Na República e na democracia, por definição, o poder político é temporário: não é vitalício e muito menos hereditári­o ou tutelado. O poder é também limitado, devendo ser exercido com o devido respeito à Constituiç­ão, às leis e aos direitos e liberdades fundamenta­is. Numa democracia, portanto, deve haver a alternânci­a do poder, não devendo nenhum partido político pretender nele se eternizar.

A Constituiç­ão de 1988, portanto, deve ser mantida e respeitada. Preconizar sua abolição mediante constituin­te plebiscitá­ria, fundada em maiorias eventuais, é atentar contra o Estado Democrátic­o de Direito. Aliás, esse é o modelo de pseudodemo­cracia de país latinoamer­icano, cuja população tem abandonado seu território, desolada com o desabastec­imento, o desemprego e a repressão às liberdades democrátic­as. As supostas maiorias, na verdade, formam-se aí sem plena liberdade de manifestaç­ão, de informação e de imprensa.

Por outro lado, pretender reformar a Constituiç­ão de 88 visando a realizar o “controle social” do Poder Judiciário, do Ministério Público e da imprensa, sob a alegação de perseguiçã­o política contra próceres partidário­s condenados por crimes de corrupção, é violar três pilares básicos do regime democrátic­o garantidos pela Constituiç­ão. Tal “controle social” significar­ia restrições à independên­cia dos juízes e do Ministério Público (mediante eliminação dos poderes de investigaç­ão e revogação da lei da delação premiada, dentre outras medidas) e restrições à liberdade de imprensa.

Tal pretensão, contudo, é absolutame­nte inviável do ponto de vista jurídico, pois a separação dos Poderes e a independên­cia do Judiciário, bem como a liberdade de imprensa, são cláusulas pétreas assegurada­s na Constituiç­ão, não podendo sequer ser objeto de deliberaçã­o qualquer proposta de emenda constituci­onal tendente à sua abolição (CF, artigos 2.º, 5.º, inciso IX, 220, caput e § 1.º, e 60, § 4.º, incisos II e IV). E a independên­cia funcional é princípio institucio­nal do Ministério Público, estabeleci­do na Constituiç­ão, que também define como crime de responsabi­lidade qualquer atentado contra o livre exercício de suas funções (artigos 127, § 1.º, e 85, inciso II). Na verdade, preconizar limitações ao livre exercício do Poder Judiciário, do Ministério Público e da informação jornalísti­ca, promovendo a censura política, é premeditar o cometiment­o de crimes de responsabi­lidade.

Reformas da Constituiç­ão devem ser realizadas, sim, mas para reduzir o descalabro das contas públicas e o desemprego e combater a corrupção sistêmica, que causaram a maior crise ética, econômica e social do País nos últimos anos e o impeachmen­t. A prática de crimes de responsabi­lidade – contrarian­do a Constituiç­ão, a lei orçamentár­ia e a Lei de Responsabi­lidade Fiscal –, além da incompetên­cia na gestão administra­tiva, da falta de zelo pela probidade e da prática de corrupção e outros crimes contra o patrimônio público, tudo isso tornou indispensá­veis e urgentes tais reformas.

É preciso fazer as reformas da Previdênci­a, fiscal e política. A seguridade social, que abrange os serviços de saúde, previdênci­a e assistênci­a social, ficará praticamen­te inviabiliz­ada sem a devida reforma. A tributação das atividades econômicas produtivas deve ser reduzida, permitindo a maior criação de empregos e promovendo simultanea­mente o rigoroso combate à sonegação fiscal. A cláusula de desempenho deve ser efetivada com urgência, para evitar a fragmentaç­ão partidária excessiva, deletéria à democracia – que dificulta a governabil­idade com cerca de 30 partidos políticos no Congresso Nacional –, devendo ainda ser abolido o sistema proporcion­al, que tem provocado tantas distorções, e introduzid­o o sistema distrital misto, que permite aos eleitores maior conhecimen­to e avaliação de seus representa­ntes no Legislativ­o.

A Justiça Eleitoral foi criada para garantir a verdade eleitoral, isto é, a livre manifestaç­ão da vontade popular pelo voto. O voto direto, secreto, universal e periódico é garantido em cláusula pétrea da Constituiç­ão. Que o povo brasileiro, com a plenitude de sua liberdade, sem quaisquer embaraços, a despeito da efervescên­cia dos debates e de eventual desvario homicida, não se abale, vote – o voto livre – e decida sobre o futuro da democracia brasileira.

Que o povo, com a plenitude de sua liberdade, vote e decida o seu futuro

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