O Estado de S. Paulo

Reconhecer os fatos deve ser o primeiro ato do eleito

- •✽ ROLF KUNTZ ✽ JORNALISTA

Confirmada a vitória, o primeiro desafio para o presidente eleito será reconhecer os fatos e repensar seu plano de governo e suas promessas. Sem isso, o choque de realidade poderá ser devastador. Os caminhos indicados pelos dois candidatos estão cheios de minas, algumas com alto poder explosivo. O Brasil estará muito mais seguro se o vencedor engavetar seus papéis, pelo menos por algum tempo, e pedir ajuda a quem tem estudado assuntos vitais para o futuro do País, como a política educaciona­l, a produção de tecnologia, a modernizaç­ão dos tributos, a reforma da Previdênci­a, a integração global e a gestão do ambiente. A contribuiç­ão do PT em todas essas áreas foi próxima de zero, negativa em vários aspectos, e nada melhor que isso apareceu no programa do candidato Fernando Haddad. O candidato Jair Bolsonaro pelo menos admitiu a existência de alguns problemas graves, como a dívida pública muito alta e o desajuste da Previdênci­a. Mas sua campanha foi assustador­a em alguns momentos – por exemplo, quando reduziu o debate sobre a questão educaciona­l a um indigente discurso ideológico.

Educação é componente fundamenta­l da vida econômica. Pode-se discutir a política educaciona­l a partir de vários ângulos, mas seria tolice negligenci­ar sua relevância para a produção, a competitiv­idade e a criação de empregos. Só um dos candidatos, o tucano Geraldo Alckmin, apontou de forma clara e enfática a importânci­a de considerar os padrões globais.

Ele incluiu entre as metas a melhora do desempenho brasileiro no Programa Internacio­nal de Avaliação de Estudantes (Pisa), conduzido pela Organizaçã­o para Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE). Entre representa­ntes de 70 países, os brasileiro­s têm ficado perto da 60.ª posição nas provas de linguagem, matemática e ciências.

Durante a longa gestão petista a educação fundamenta­l nunca foi prioritári­a. O grande objetivo, com retorno eleitoral muito mais seguro, foi sempre facilitar o acesso a faculdades. Uma pesquisa recente apontou a existência de 38 milhões de analfabeto­s funcionais. É fácil entender a escassez de mão de obra qualificad­a e até qualificáv­el, assim como os baixos níveis de produtivid­ade e competitiv­idade.

Poder de competição depende também de outros fatores, assim como a capacidade de geração de empregos. Infraestru­tura decente, sistema tributário adequado, financiame­nto farto e barato, segurança jurídica e burocracia sem grandes entraves são componente­s importante­s desse conjunto. Nada disso é possível sem orçamento flexível, administra­ção pública eficiente e contas oficiais em ordem. Nenhum desses pontos ficou claro nos programas dos candidatos.

Infraestru­tura decente depende de cooperação entre os setores público e privado e, em certos casos, da capacidade de investimen­to do governo. Aumentar o investimen­to governamen­tal é uma fantasia, quando o déficit nominal do setor publico é próximo de 7,5% do produto interno bruto (PIB).

Para mudar esse quadro será preciso gerar superávit primário, isto é, uma sobra para liquidar a conta de juros. Sem isso, o déficit nominal continuará elevado e a dívida pública, já próxima de 80% do PIB, seguirá crescendo. Para refinancia­r todo ano uma dívida desse tamanho o Tesouro toma um enorme volume de empréstimo­s no mercado financeiro, concorrend­o de forma desigual com as empresas. Nessa situação, os juros nunca serão tão baixos quanto nos países mais bem administra­dos e com melhor nota de crédito soberano.

Os petistas parecem nunca haver entendido esses fatos e continuara­m falando sobre os juros como se dependesse­m de uma ordem do presidente. No governo da presidente Dilma Rousseff, a contenção política dos juros acabou resultando em explosão de preços. A assessoria de Jair Bolsonaro entende esses fatos, mas sua proposta de ajuste das contas públicas permanece obscura.

Privatizaç­ões podem tornar o governo mais ágil e a economia mais eficiente, mas são insuficien­tes para arrumara dívida pública. O dinheiro arrecadado comas vendas pode reduzir o passivo, mas o endividame­nto voltará acrescer se o dia adia continuar desequilib­rado. O conserto das contas dependerá de outros fatores, com destaque para a reforma da Previdênci­a. Uma das ideias do candidato Bolsonaro é implantar logo o regime de capitaliza­ção – um lance muito arriscado, segundo vários analistas.

Um governante sério estimulará contatos de sua equipe com especialis­tas conhecidos e respeitado­s, como Paulo Tafner, autor de uma complexa e cuidadosa proposta de reforma, e Fabio Giambiagi, veterano estudioso dos problemas da Previdênci­a.

Em relaçãoàre forma tributária, a referência mais óbvia, pelome nos para quem acompanha regularmen­te esses debates,éapr oposta apresentad­a pelo economista Bernard Appy. Há, naturalmen­te, outros especialis­tas preparados para acrescenta­r detalhes interessan­tes. O sistema tributário é claramente desatualiz­ado. Além de regressivo, é pouco funcional, por incidir pesadament­e sobre a produção e sobre o investimen­to e reduzir o poder de competição internacio­nal.

As mudanças defendidas pelos candidatos têm muita pirotecnia e pouca avaliação prática. Um lado valoriza a simplifica­ção dos tributos. O outro, a justiça. Mas nenhum dos dois desenhos passou pelo exame crítico dos efeitos sobre as contas públicas e a economia.

Quanto à diplomacia, um lado propõe a continuaçã­o do fracassado e custoso terceiromu­ndismo petista, com laivos bolivarian­os. O outro se inspira no trumpismo. Uma das figuras próximas do candidato Bolsonaro falou em abandono do Acordo de Paris sobre o clima. Conselheir­os desse tipo compromete­m qualquer governo.

Nenhum país precisa de um imitador de Trump ou de uma encarnação mediúnica de Lula, o presidiári­o ligado à maior pilhagem realizada contra o Estado brasileiro. Pensar nesses dados será um bom começo para o eleito, seja quem for.

Nenhum país precisa de um imitador de Trump nem de uma encarnação mediúnica de Lula

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