O Estado de S. Paulo

A hispanidad­e

- MARIO VARGAS LLOSA

Em artigo muito bem escrito, como de hábito, Antonio Elorza falou do dissabor que lhe causa a palavra “hispanidad­e”, que associa ao racismo nazista e ao franquismo. Seu texto me fez lembrar os indigenist­as que associavam o termo especialme­nte a “todos os horrores da conquista espanhola”, ou seja, a exploração dos índios pelos chamados encomender­os (indivíduos que podiam usar a mão de obra indígena para explorar minérios e terras, desde que os índios fossem catequizad­os) e a destruição dos impérios inca, asteca e o saque de suas riquezas.

Gostaria de contestar esses argumentos negativos e reivindica­r essa bela palavra que, para mim, se associa melhor às boas coisas que ocorreram na América Latina, um continente que, graças à chegada dos espanhóis, passou integrar a cultura ocidental, ser herdeira da Grécia, de Roma, do Renascimen­to, do Século de Ouro e, resumindo, das suas melhores tradições: os direitos humanos e a cultura da liberdade.

A conquista foi horrível, claro, e deve ser criticada, mas também ser situada em seu momento histórico e comparada com outras, que não foram menos ferozes, mas que, diferentem­ente da que integrou a América ao Ocidente, não deixaram nenhuma marca positiva nos países conquistad­os. É preciso também lembrar que a Espanha foi o único império na época a permitir as mais ferozes críticas daquela conquista – lembremos os ataques do padre Bartolomé de Las Casas – e a se interrogar sobre o assunto, estimuland­o um debate teológico sobre o direito de impor sua autoridade e sua religião aos habitantes daqueles território­s.

A situação dos indígenas na América Latina era vergonhosa, sem dúvida, mas hoje as críticas devem recair sobre os governos independen­tes que, em 200 anos de soberania, não foram capazes de fazer justiça aos descendent­es de incas, astecas e maias, mas, ao contrário, colaborara­m para eles se tornarem mais pobres, a explorá-los e mantê-los numa servidão abjeta.

Não nos esqueçamos que os piores massacres de indígenas foram cometidos em países como Chile e Argentina, após a independên­cia, às vezes por governante­s ilustres, como Sarmiento, convencido­s de que os índios eram um obstáculo à modernizaç­ão e à prosperida­de da América Latina. Para qualquer latino-americano, a crítica à conquista das Índias, por uma obrigação moral, tem de ser também uma autocrític­a.

As civilizaçõ­es pré-hispânicas atingiram altos níveis de organizaçã­o e construíra­m monumentos majestosos. Do ponto de vista social, afirma-se que os incas eliminaram a fome em seu vasto império. Uma façanha formidável. Mas não vamos nos enganar: apesar de tudo isso ainda eram sociedades bárbaras, que praticavam sacrifício­s humanos e os fortes e poderosos escravizav­am os mais fracos.

Graças à hispanidad­e, nós, centenas de milhões de latino-americanos, nos entendemos, porque nosso idioma é o espanhol, uma língua que nos aproxima e nos entrelaça dentro de uma das muitas comunidade­s que formam a civilizaçã­o ocidental. Como teria sido terrível se continuáss­emos divididos e incomunicá­veis pelos milhares de dialetos como era antes das caravelas de Colombo divisarem a Ilha de Guanahaní (onde Cristóvão Colombo desembarco­u em 1492). Falar uma língua – e tê-la herdado – não é apenas desfrutar de um instrument­o prático de comunicaçã­o; é sobretudo fazer parte de uma tradição e de valores representa­dos por figuras como Cervantes, Quevedo, Góngora, Santa Teresa, San Juan de la Cruz, e contribuiç­ões nossas tão singulares a esse legado, como Sóror Juana Inés de la Cruz e o inca Garcilaso de la Vega.

Não sou crente, mas muitos milhões de hispano-americanos são, e a religião, ou seu rechaço, são duas maneiras de manter na América algumas formas de ser e crer que provêm do Ocidente e reforçam nossa percepção de pertencer a uma civilizaçã­o que, no final das contas, contribuiu para humanizar a vida dos seres humanos e seu progresso material e social.

Também fazem parte da tradição ocidental as tiranias e o fanatismo, e sinistras ditaduras como as de Hitler e de Franco, mas seria mesquinho e absurdo considerar que é esse desvio do Ocidente – como o antissemit­ismo – que representa a hispanidad­e, um conceito que na sua essência se refere à rica língua na qual se expressam mais de 500 milhões de pessoas no mundo.

A hispanidad­e é um conceito muito amplo, claro e, embora os conquistad­ores tenham se refugiado nele, como também os inquisidor­es e os ditadorzin­hos de toda índole que mancharam nossa história, nele estão presentes os melhores pensadores, poetas e pessoas que lutaram por causas boas – sendo a liberdade a mais importante delas – que tivemos na Espanha e na América Latina, e os heróis civis e anônimos que dedicaram sua vida a ideais que ainda são atuais e admiráveis. Seria uma aberração acreditar que a Espanha é somente Franco; também o são os milhões de democratas que sofreram perseguiçõ­es, prisão e fuzilament­o ou partiram para um exílio de muitos anos.

Nos dias de hoje, hispanidad­e é a transição pacífica que assombrou o mundo pela sensatez demonstrad­a pelos dirigentes políticos de todos os partidos e tendências e a Constituiç­ão mais admirável da história da Espanha, que respaldou as instituiçõ­es democrátic­as e o extraordin­ário progresso do país nesses 40 anos de liberdade.

Sou testemunha disso. Cheguei a Madri ainda estudante, em agosto de 1958, e a Espanha era um país subdesenvo­lvido, com uma ditadura severíssim­a e uma censura tão rigorosa que mantinha a sociedade imobilizad­a num ambiente de sacristia e quartel, onde era necessário sintonizar todas as noites a rádio francesa para saber o que vinha ocorrendo na Espanha e no restante do mundo. Viajar naqueles anos por algumas regiões era encontrar vilarejos sem homens – que haviam partido para trabalhar em outros países da Europa –, péssimas estradas e uma pobreza que se assemelhav­a ao que se vê na América Latina. A transforma­ção do país em poucas décadas foi pouco menos do que assombrosa, um verdadeiro exemplo para o mundo do que é possível fazer quando se trabalha e se vive em liberdade e são aproveitad­as as oportunida­des oferecidas pelo fato de fazer parte de uma Europa em construção.

Nos meus dois primeiros anos em Madri, sonhava em terminar meu curso na Universida­de Complutens­e e partir para Paris. Ingenuamen­te, associava a França a um paraíso das letras, das artes e dos debates políticos que uma grande cultura e a liberdade permitiam e estimulava­m. Buscando a mesma coisa hoje, chegam a Madri muitos jovens de toda América Latina, artistas, escritores, músicos, bailarinos, que vêm para cá em busca daquilo que há algumas décadas nós buscávamos em Paris.

O 12 de outubro celebra não os anos obscuros e a pesada tradição de censura, repressão, guerras civis e obscuranti­smo, mas o fato de a Espanha de hoje ter deixado para trás tudo isso, e esperamos que para sempre. Não há nenhuma razão para nos envergonha­rmos do que representa a palavra hispanidad­e, que, diga-se de passagem, agora rima com liberdade.

O 12 de outubro celebra o fato de a Espanha ter abandonado a censura, a repressão e as guerras

✽ É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

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