A CURA DO ÓDIO
Um convite para o jantar do início do Shabat judaico é um sinal de hospitalidade e inclusão, especialmente se o convidado pertence a outra religião ou a nenhuma. Receber o mesmo convidado no Shabat ao longo de dois anos é um sinal indiscutível de amizade. Especialmente se a família do convidado tem o hábito de comemorar o aniversário de Adolf Hitler.
Uma história extraordinária de tolerância e emancipação é narrada no novo livro do jornalista Eli Saslow. Em Rising Out of Hatred: The Awakening of a former White Nationalist (Renascendo do Ódio: O Despertar de um Ex-Nacionalista Branco), o repórter do Washington Post mergulha no mundo do extremismo racial que tem se deslocado para o território mainstream nos EUA. O livro abre numa reunião pelos “direitos dos brancos” em Memphis, Tennessee, logo após a eleição do primeiro presidente negro do país, em 2008. A ascensão de Barack Obama foi a maior injeção de ânimo racista no país desde o Ato dos Direitos Civis de 1964.
Derek Black cresceu na realeza da Ku Klux Klan. Seu pai, Don Black, dirigiu por dois anos a organização racista fundada no sul no início da Guerra Civil, em 1865. O padrinho de Derek é David Duke, antecessor de seu pai na direção da KKK, nos anos 1970.
Don Black fundou, em 1996, o website Stormfront. O site foi pioneiro da propagação da supremacia branca online. Derek Black foi educado em casa, deu sinais de precocidade e, ainda adolescente, fundou o KidStormfront para jovens. Aos 19, concorreu como republicano e ganhou uma vaga na câmara de West Palm Beach, na Flórida, mas foi impedido de tomar posse porque o partido invocou um detalhe no estatuto. Não era importante, ele hoje explica. O objetivo era provar que seria possível fazer a reformulação de um movimento associado a linchamentos de negros no século 20. Três anos depois, Derek renunciou à identidade e às convicções haviam definido sua vida.
Numa entrevista exclusiva ao Aliás, Eli Saslow explica a evolução da nomenclatura: “No começo, era a Ku Klux Klan, depois o poder branco, em seguida o orgulho branco, a supremacia branca e, afinal, o nacionalismo branco.” O termo foi consagrado pelo pai de Derek para passar uma borracha no passado violento e promover um eufemismo para a supremacia branca. O nacionalismo branco não propõe o extermínio, e sim a separação nacional de raças diferentes.
Se o livro tem figuras heroicas, são os dois colegas judeus de Derek, Moshe Ashe e Matthew Stevenson, na faculdade onde o herdeiro da realeza racista pela primeira vez teve contato com a população diversa de uma escola. Inicialmente, Derek tentou esconder sua identidade no campus. Ao estudar história, entendeu o absurdo da negação do Holocausto, que foi um pilar de sua educação.
Eli Saslow recorda que, nos frequentes jantares do Shabat, os amigos nunca conversavam sobre assuntos como nazismo ou nacionalismo branco. Incitavam o convidado a falar apenas do que tinham em comum, fosse esportes ou cultura. Era doloroso. Os dois liam o que o amigo escrevia online sobre judeus e negros. Saslow explica que os judeus, mais do que negros, são o maior objeto de repulsa dos nacionalistas brancos porque “são acusados de propagar mitos multiculturais com o objetivo de desestabilizar a Europa e os Estados Unidos para assumir o poder.”
Parte da explicação para a normalização de tanto extremismo, diz Saslow, está na astúcia de Derek Black. Ele não batia à porta de eleitores falando em violência. Usava códigos, como “já viram a quantidade de sinais em espanhol na Flórida?” Saslow afirma que “pessoas que não se definiam como racistas se entusiasmavam com a conversa que quebrava tabus de correção política.” O outro fator, lembra ele, é que a argumentação da supremacia disfarçada de nacionalismo não vem de ignorantes lunáticos. Ela conta com acadêmicos oferecendo versões alternativas
da história ou charlatães estudiosos de genética, autoridades selecionadas para solidificar uma ideologia.
“Pense na coragem e determinação dos dois amigos judeus de Derek Black,” pede Saslow. Ao voltar para a casa e ouvir a mesma retórica do pai sobre judeus, começou a comparar o discurso de ódio ao amigo de carne e osso. Foi uma jornada de humanização. Derek também começou a namorar uma jovem sem saber que ela era judia.
Em 2013, Derek Black viu que o caminho não tinha volta. Escreveu uma longa denúncia ao Southern Poverty Law Center, uma ONG do Alabama conhecida por monitorar e denunciar violência racial. Passou a ser ameaçado como traidor da causa. Diz que carrega para sempre o fardo de ter fornecido combustível para violência. A relação com os pais é tensa mas ainda existe.
Num encontro em 2017, depois que neonazistas e nacionalistas brancos marcharam sobre Charlottesville e uma jovem foi morta pelo carro dirigido por um deles, Don e Derek Black se encontraram num restaurante. A essa altura o filho já escrevia editoriais denunciando Donald Trump, em quem o pai votou. Don Black acha que Trump avançou sua luta em décadas. Antes de se despedirem, o pai, ainda inconformado, disse ao filho: “Tudo o que você defendia está se tornando realidade.”
Pergunto a Eli Saslow sobre a diferença entre normalizar e humanizar. “Obrigado por tocar nisso,” diz. “Espero que meu livro sirva como exemplo de que não adianta gritar com o outro. É preciso denunciar a ideia e tentar entender como a pessoa chegou a ela.”
Jornalista premiado com o Pulitzer conta em novo livro o caso do filho de um chefe da Ku Klux Klan que deixou o racismo para trás graças a amigos judeus