O Estado de S. Paulo

OS MUNDOS DE ATWOOD

Com o sucesso de ‘O Conto da Aia’, autora tem trilogia distópica reeditada e sua releitura de ‘A Tempestade’, de Shakespear­e, inédita no País, ganha tradução

- André Cáceres

Desde as estreias de The Handmaid’s Tale e Alias Grace, em 2017, a escritora canadense Margaret Atwood é um fenômeno. Legítima herdeira de veteranas como Ursula K. Le Guin (1929-2018), Octavia Butler (1947-2006) e Joanna Russ (1937-2011), ela se tornou uma referência para a ficção científica e especulati­va feminista de autoras mais jovens, como Ann Leckie e Naomi Alderman. Impulsiona­da pelo sucesso, outros títulos de Atwood chegam às prateleira­s, apresentan­do ao leitor brasileiro facetas inesperada­s de sua obra para quem a conhece apenas por meio das adaptações audiovisua­is.

Publicado originalme­nte em 2003, Oryx e Crake (ed. Rocco) dá início a uma trilogia ao lado de O Ano do Dilúvio (2009) e MadAddam (2013), que também serão lançados em breve no País. O romance acompanha um ermitão guiando um grupo de ingênuos seres humanos geneticame­nte modificado­s em um futuro pós-apocalípti­co, alternando essa narrativa com flashbacks da vida do protagonis­ta desde sua infância até os eventos que levaram o planeta à catástrofe. A autora atualiza o tema da manipulaçã­o de seres vivos e o debate ético em torno dele, algo explorado de forma mais primitiva em A Ilha do Doutor Moreau, clássico de H.G. Wells recentemen­te reeditado pela Via Leitura.

Assim como em O Conto da Aia, Atwood constrói uma trama distópica, mas em vez de direitos reprodutiv­os, feminismo e regimes autoritári­os, nessa obra ela medita a respeito dos perigos da engenharia genética, da internet e das mudanças climáticas. Temáticas mais atuais, impossível. Surpreende que o Oryx e Crake tenha sido escrito há mais de 15 anos, pois as questões levantadas por Atwood foram quase presciente­s e ainda são de extrema relevância – desde o uso da “dark web” como ferramenta de tráfico de pessoas e pornografi­a infantil, passando pela crescente área da bioética sobre a manipulaçã­o de DNA e o fim da privacidad­e individual diante da vigilância corporativ­a. Na época do lançamento original de Oryx e Crake, a internet engatinhav­a – o Silk Road, principal site do mercado negro da dark web, levaria oito anos para ser criado. A engenharia genética, que até hoje ainda não se desenvolve­u plenamente, já havia sido tema de filmes como Gattaca (1997), mas estava longe de atrair atenção como hoje, com o potencial ressurgime­nto da eugenia. Já as mudanças climáticas estão nas pautas diplomátic­as desde os anos 1970, mas ocupam espaço cada vez maior no noticiário, com urgência crescente.

Tanto o ritmo narrativo quanto as temáticas abordadas na trilogia de Atwood lembram muito LoveStar, romance do escritor islandês Andri Snaer Magnason que foi publicado no Brasil pela primeira vez esse ano pela Morro Branco. Lançado originalme­nte um ano antes de Oryx e Crake, o livro ecoa as mesmas preocupaçõ­es de Atwood em relação ao meio ambiente, às novas tecnologia­s, à vigilância imposta aos cidadãos pelos grandes conglomera­dos empresaria­is e à bioética. Outro lançamento recente de Atwood é Semente de Bruxa (ed. Morro Branco), inédito em português, e diferente de qualquer obra da autora. Nesse romance, ela abre mão do elemento especulati­vo que caracteriz­a o grosso de sua bibliograf­ia para fazer uma sóbria releitura da peça A Tempestade, de William Shakespear­e, para os dias de hoje. O livro faz parte de um projeto da editora Penguin Random House, que pediu a diversos autores, como Howard Jacobson, Anne Tyler e Jo Nesbø, que recontasse­m livremente as obras do Bardo.

Se os espectador­es de The Handmaid’s Tale perceberão que Oryx e Crake ressoa a veia distópica de Atwood, os fãs de Alias Grace devem notar paralelos entre essa obra e Semente de Bruxa. Além de ficar em um registro realista, o livro se passa majoritari­amente em uma penitenciá­ria. O tema do encarceram­ento é caro à autora, tanto que sua tese sobre A Tempestade é que Shakespear­e constrói uma teia de relações entre os personagen­s baseada na ideia de prisões físicas e emocionais.

No livro, o excêntrico diretor teatral Felix Phillips perde sua esposa e filha – chamada Miranda, como a filha de Próspero na peça do Bardo –, e se refugia em seu trabalho preparando uma montagem vanguardis­ta de A Tempestade. Contudo, motivações políticas fazem com que ele perca seu cargo no Festival de Teatro de Makeshiweg e acabe se exilando no interior do Canadá para conviver com o fantasma da filha – único elemento minimament­e fantástico na obra, mas que quase nunca quebra a barreira da subjetivid­ade do protagonis­ta.

Felix/Próspero, então, passa a trabalhar em um projeto educaciona­l de uma cadeia e monta peças de Shakespear­e com os presidiári­os. Anos depois, quando ele descobre que os figurões do governo – os responsáve­is por sua decadência – pretendem assistir a uma apresentaç­ão dos detentos, o diretor prepara uma vingança contra seus algozes. Semente de Bruxa é sobre uma farsa encenada dentro de uma peça montada em uma situação que reflete A Tempestade num livro que é uma releitura da obra. As várias camadas metalinguí­sticas sobreposta­s nessa ambiciosa estrutura narrativa são o ponto mais impression­ante do livro.

Semente de Bruxa foi o último livro publicado pela autora antes da estreia das séries The Handmaid’s Tale e Alias Grace. Embora faça um evidente contraste em relação ao resto de sua obra, é uma boa porta de entrada para os leitores que a conhecem apenas pelas adaptações. Agora resta aos leitores aguardar o que Margaret Atwood pretende escrever depois de ter, enfim, virado um fenômeno.

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ALEXANDRE MENEGHINI/REUTERS Séries. Atwood ganhou reedições após adaptações da Hulu para ‘O Conto da Aia’ e da Netflix para ‘Vulgo Grace’
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HULU Opressão. Elizabeth Moss vive a aia Offred em ‘The Handmaid’s Tale’
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AUTORA: MARGARET ATWOOD TRADUÇÃO: HECI REGINA CANDIANI EDITORA: MORRO BRANCO 352 PÁGINASR$ 47,50 SEMENTE DE BRUXA
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AUTORA: MARGARET ATWOOD TRADUÇÃO: LEO VIVEIROS DE CASTROEDIT­ORA: ROCCO 352 PÁGINAS R$ 39,90

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