O Estado de S. Paulo

A PREMIADA LESLEY, REVELAÇÃO NIGERIANA

Coletânea traz 12 contos de Lesley Nneka Arimah, uma revelação da África, que transita entre o registro realista e o fantástico em livro engajado

- ✽ Dirce Waltrick do Amarante ✽ AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘ASCENSÃO: CONTOS DRAMÁTICOS’ (EDITORA CULTURA E BARBÁRIE)

A jovem escritora Lesley Nneka Arimah é uma instigante revelação literária. Nascida no Reino Unido, de pais nigerianos, cresceu na Nigéria e hoje vive no EUA. Seu livro de estreia, uma coletânea de contos intitulada O que Acontece Quando um Homem Cai do Céu (2017), angariou alguns dos prêmios mais importante­s de ficção, como o prêmio norte-americano Kirkus Reviews. Suas histórias chegam agora ao Brasil, pela editora Kapulana, em tradução de Carolina Kuhn Facchin.

Embora viva nos EUA, essas histórias se passam sobretudo no continente africano, mais especifica­mente na Nigéria. Em determinan­do momento, Lesley destaca o olhar do Ocidente para a África, uma África fabular, com animais selvagens, danças “exóticas”: “É, ouvi dizer que a sua mãe mandou você de volta pra a África. Me manda umas fotos de mulheres sem blusa”, diz a amiga norteameri­cana da protagonis­ta de Descontrol­ada.

Mas o que Lesley descreve em seus contos são situações urbanas bastante comuns, como a ida a um evento beneficent­e com fotógrafos e uma elite local que aguarda na porta o motorista particular chegar com o carro. Por vezes, a sociedade nigeriana retratada nesses contos se parece muito com a brasileira, repleta de hierarquia­s e de empregados domésticos tratados de forma preconceit­uosa: “Minha mãe teria desmaiado de humilhação ao me ver tratar uma empregada como visita, então eu me apressei com ela pela casa, mostrando isso e aquilo” ou “Minha mãe recitava as virtudes de jovens empregadas o tempo todo – adaptável, facilmente intimidada, que provavelme­nte não seduziria o homem da casa ou apareceria grávida”.

No discurso da mãe, há também uma visão machista ostensiva, que põe na conta da mulher os desacertos dos homens. Se essa fala choca é, talvez, por nos sentirmos próximas dela. Em Glória, a protagonis­ta é o oposto do que os pais sonhavam: tem um emprego miserável, nenhum namorado e uma atitude implicante, que não condiz com a de uma mulher. Mas quando “arranja” um “bom” namorado, tudo muda: “Seu trabalho, sempre ridiculari­zado, era agora uma coisa boa. O fato de ela não ter uma carreira, escreveu seu pai, significav­a que ela poderia focar completame­nte nos filhos quando eles viessem. Veja bem, ele continuou, ela tinha escolhido o homem perfeito para compensar suas fraquezas. Gentil ao contrário dela, econômico ao contrário dela. Bem-sucedido.”

Em O Futuro Parece Bom, Lesley traz à tona a violência contra a mulher, que, obrigada pela família a achar um “provedor”, abre mão de sua própria integridad­e. Aliás, nesses contos, a mulher é uma figura vulnerável que, abandonada pelo parceiro, não consegue muitas vezes reconstrui­r sua vida, precisando do auxílio da família, a qual a contragost­o a abriga no seio de seu lar, como se lê no conto As Meninas da Buchi. Nessa antologia, são muitas as famílias constituíd­as apenas por mulheres. Outras minorias, como os imigrantes, também são protagonis­tas das histórias de Lesley. A propósito dos imigrantes, lembra uma protagonis­ta, eles não podem violar a sua norma mais importante, que é viver “de forma simples e de acordo com as regras”.

Muitos dos contos são realistas; outros, contudo, são contos de ficção científica, e um deles, O Que É um Vulcão?, lembra uma fábula. Embora mude o gênero, a voz política da escritora nigeriana permanece a mesma. Em Quem Vai te Receber em Casa, a procriação não depende do sexo masculino, e os bebês, feitos pelas mulheres com materiais que elas têm em mãos, ganham vida depois de abençoados por uma “feiticeira”, que nada mais é do que a dona de um salão de beleza. Na África, ela sabia que era preciso construir uma criança com “corpo forte, que consiga limpar e arrastar e esfregar. Crianças macias com vidas duras enlouquece­m ou morrem jovens”. Mas as ricas podiam se dar ao luxo de ter bebês de “porcelana, com um rosto liso e vidrado”.

O conto que dá título ao livro se passa num mundo em que A África e a Austrália sobreviver­am a um desastre natural. Conhecemos a história de uma matemática que consegue remover o sofrimento das pessoas. As ciências exatas explicaria­m a tristeza e uma fórmula eficaz arrancaria das pessoas suas misérias. Mas o sofrimento ainda relativo e cabe ao matemático saber qual tem prioridade: pessoas com vida fácil “que já tinham passado por coisas complicada­s, mas suportávei­s” não podiam “comparar as suas escassas dificuldad­es com problemas incomensur­áveis”.

Há uma série de palavras, de termos nigerianos, que embora possam ser entendidos no contexto, valeriam um pequeno glossário ao final do volume. Livro essencial, sensível, politicame­nte engajado. Um convite para um mergulho na ficção africana que ainda conhecemos tão pouco.

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KAPULANA Social. Contos de Arimah revelam Nigéria desigual
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AUTORA: LESLEY NNEKA ARIMAH TRADUÇÃO:CAROLINA KUHN FACCHINKAP­ULANA 167 PÁGS;, R$ 39,90 EDITORA:

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