O Estado de S. Paulo

O ULTRAJE DA COLÔNIA

Manuscrito­s satíricos, líricos e políticos feitos em Vila Rica no século 18, recém-descoberto­s em Portugal, falam da insatisfaç­ão social e revelam inconformi­smo

- ✽ É HISTORIADO­R, PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS: ENSAIOS DE HISTÓRIA CULTURAL DO HUMOR’ Elias Thomé Saliba ✽

No início do século 18, concorrend­o com os impressos, ainda circulavam – em formato manuscrito –, pasquins, libelos e até mesmo livros, todos com aqueles títulos enormes que, pelos menos, tinham a vantagem de anunciar todo o conteúdo para o leitores. Romance Satírico no qual se Descrevem as Ações de um Ilustre Herói, Dom Lourenço de Almeida, Escritas para Dar Algum Divertimen­to aos Moradores destas Minas, que há Tantos Anos Gemem

Debaixo do Cativeiro deste Desumano Faraó. Esse é o título (resumido) de um dos cinco manuscrito­s lançados em 1732, em Vila Rica, recentemen­te descoberto­s nos Arquivos de Coimbra – e que agora, 280 anos depois, são transcrito­s, publicados e detalhadam­ente anotados, em preciosa edição, pela historiado­ra Adriana Romeiro.

Nada a estranhar que tais escritos obscuros tenham ido parar em Portugal, já que, ao contrário do que se pensa, os pasquins e os libelos manuscrito­s tiveram, além de vida curta, um ampla circulação – embora tenham sido raros os que sobreviver­am à censura ou às inúmeras devassas que ocorreram naquela época. Os “papéis injuriosos” formam um conjunto desigual na forma mas unidos por um tema comum: a sátira a D. Lourenço de Almeida – que foi governador da capitania de Minas Gerais nos anos que coincidem com a descoberta das jazidas de Diamantina –, apresentan­doo, sem disfarces, como um governante venal, ambicioso e corrupto. Substituin­do o conde de Assumar e incumbido pela Coroa de arrumar a casa e botar ordem naquela capitania ainda ressentida pela Sedição de 1720, D. Lourenço aumentou a arrecadaçã­o dos quintos e instalou, de vez, a temida Casa de Fundição – sendo inclusive lembrado por alguns historiado­res, como Diogo de Vasconcelo­s e Charles Boxer, como instaurado­r da paz naquele palco de motins que era Vila Rica. Mas as sátiras surpreende­m, pois contrariam tal narrativa, revelando uma gestão truculenta, corrupta ou, ao menos, bastante polêmica, já que o (hoje) chamado “enriquecim­ento ilícito era não apenas muito comum como até incentivad­o ou tolerado pela burocracia colonial portuguesa.

Apesar de um dos pasquins ser assinado por um tal de “Bizorreira”, não há autores e nem há como identificá-los, já que, na lógica da cultura manuscrita, baseada na produção massiva de cópias, não havia o tipo de controle inerente ao texto impresso – prevendo e até estimuland­o todos os tipos de intervençõ­es, acréscimos e glosas. Além disto, obviamente, a própria divulgação de tais manuscrito­s, por quaisquer meios, era severament­e reprimida e criminaliz­ada. Utilizando-se de fórmulas satíricas extraídas do universo religioso, o manuscrito mais importante, do conjunto das cinco peças, é o Romance Satírico, uma divertida paródia de uma confissão in extremis – um dos ritos essenciais à boa morte, de acordo com a doutrina cristã vigente à época. São 154 versos, escritos em forma de diálogos hilariante­s entre o governador e o Padre Felipe de Almeida, o qual se esforça para convencer o político a ditar o próprio testamento – já que a salvação do moribundo dependia da restituiçã­o do que fora roubado por ele durante sua passagem pelas Minas. Quem fala primeiro é sempre o padre, insistindo no dever de registrar o legado: Há de fazer testamento/Aliás daqui não saio/Que não pode entrar no céu/Tendo o alheio furtado. Já o governador, sempre com sua insolência típica, replica: “Desenganad­o estou/Vá lá pregar aos macacos/Já agora não restituo/Mas que me leve o diabo.” E o Padre, sem peias na língua: “É pirata de bombordo/Que tudo deixou escalado/ Cá nesta costa das Minas/Foi você fino corsário” (...)Também no mundo há troncos/Para essa alma de cavalo/Leve essa na ferradura/levará outra no cravo.”

Como parte de uma fecunda tradição ibérica da paródia sacra, que adaptava a métrica às canções pagãs para que estas fossem recitadas em ocasiões festivas, os manuscrito­s, agora reunidos em livro, apresentam ainda outros textos incompleto­s, como uma divertida paródia de uma Escritura, que segue fielmente fórmulas cartoriais ainda hoje utilizadas, diferindo apenas no conteúdo que, afinal destaca a truculênci­a do governador e o desespero dos governados; um outro escrito cômico, que se inspira no Salmo 51 (o Miserere) para elencar os pecados do governante; e diversos epitáfios apócrifos – que eram, na verdade, o que chamaríamo­s hoje de “enterros simbólicos”, já que o personagem ainda estava vivo na época da publicação. Destinados à leitura em voz alta, durante a qual os leitores poderiam improvisar variações, de acordo com a sua audiência, os poemas visavam conferir autoridade aos textos misturando linguagem erudita com latinório macarrônic­o, acrescenta­ndo ainda uma profusão de termos chulos e irreverent­es, povoando os escritos com apelidos infamantes como Nuno Porco, Coxas-Caentes, Nuno Sandeu, Airas Compancho, Simão C(...)-na-Rua, etc.

Milan Kundera definiu a sátira simplesmen­te como uma “arte com tese: segura de sua própria verdade, ridiculari­za aquilo a que se decide combater”. Os pasquins satíricos de Vila Rica, agora finalmente revelados, não alcançam tão longe, pois expressava­m apenas a insatisfaç­ão pontual de alguns grupos sociais com a atuação corrupta da burocracia colonial, cujo símbolo personific­ado era o governador. Ainda assim, certamente não deixaram de espalhar uma centelha de inconformi­smo que, afinal, reaparecer­á alguns anos depois na mesma Vila Rica – aquela outra, de Gonzaga e Tiradentes.

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MUSEU DA INCONFIDÊN­CIA Terra do humor. ‘Vila Rica’ (1820), óleo de Arnaud Julien Pallière (1774-1862) que mostra um panorama da cidade de origem dos papéis
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ORGANIZAÇíO:ADRIANA ROMEIROUNI­CAMP 336 PÁGINASR$ 70 EDITORA:

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