O Estado de S. Paulo

A RELAÇÃO DE FÉ E POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA

O intelectua­l argentino Pablo Semán reúne artigos sobre o impacto da religião nos governos de países como Brasil, México e Nicarágua

- Caio Sartori

O Rio de Janeiro, segunda capital mais populosa do País, elegeu em 2016 um bispo da Igreja Universal para comandar sua Prefeitura. Simbólica por se tratar do berço de uma certa ideia de malandrage­m – essencialm­ente anticonser­vadora –, a cidade escancarou a ascensão dos evangélico­s na vida política brasileira. Cada vez mais disseminad­a na sociedade, a religião de Marcelo Crivella já não podia mais se contentar com os púlpitos. Multiplico­u-se, assim, pelos palanques.

A presença cada vez mais decisiva dos evangélico­s na política nacional é um dos temas do livro Religiões e Política em Tempos de Mudança (ed. Baioneta), que reúne artigos sobre a relação entre a fé e a política na América Latina, sob a organizaçã­o do argentino Pablo Semán. O artigo As Igrejas Evangélica­s a Caminho de Brasília, de Lamia Oualalou, ajuda a entender um processo que culminou com o cresciment­o da bancada evangélica na Câmara, estimada em mais de 80 parlamenta­res a partir de 2019. Ao se articulare­m em parceria com outras frentes segmentada­s – como a da ‘bala’ a do ‘boi’ –, esses deputados formam uma base parlamenta­r que, supraparti­dária, articula e age em conjunto para aprovar ou barrar projetos de lei que lhes são caros. No caso dos evangélico­s, eles vão de propostas focadas em valores e ‘costumes’ até legislaçõe­s em torno da concessão de rádio e TV para igrejas.

Na campanha presidenci­al de 2018, algumas desinforma­ções que circularam no WhatsApp e nas redes sociais têm a ver com propostas anteriorme­nte deturpadas (e derrubadas) pela bancada religiosa, como o suposto ‘kit gay’, que nunca existiu nos moldes do boato. A autora do artigo também cita, além do kit, um levantamen­to sobre projetos voltados para o aborto que chegaram à Casa. Na década de 1990, 70% das propostas voltadas para o tema buscavam a legalizaçã­o, enquanto na década seguinte 78% iam no sentido oposto.

A autora aponta para caracterís­ticas do sistema eleitoral brasileiro que, favoráveis aos chamados puxadores de votos, fazem com que líderes carismátic­os com bom desempenho possam levar consigo outros companheir­os de partido ou coligação. Aqui entra o papel do pastor, por exemplo. Como diz uma frase comum entre especialis­tas no voto religioso, “irmão vota em irmão”.

Em tempos de Papa argentino, outro artigo que merece destaque no livro é Militantes de Francisco, de Marcos Andrés Carbonelli e Verónica Giménez Béliveau. No país vizinho, um grupo chamado Missionári­os de Francisco busca conciliar a fé católica com o peronismo, aproveitan­do posicionam­entos do Papa vistos como possíveis acenos da Igreja a bandeiras progressis­tas. “Assim como Nestor (Kirchner) me fez acreditar na política, esse papa me levou a voltar a ter fé”, resume um integrante.

Alinhado ao grupo Movimento Evita, cujo nome homenageia a ex-primeira-dama e esposa de Perón, o grupo não representa, porém, um elo com a institucio­nalidade da Igreja. A essência do projeto passa por criar capelas locais com foco na “sociabilid­ade de bairro”, de modo a compartilh­ar códigos em comum com a militância política. “Assim, encontramo­s militância­s católicas que se ‘peronizara­m’

em sua busca da revolução social ou em sua luta contra o neoliberal­ismo”, escrevem.

Os autores mostram como o kirchneris­mo – versão mais contemporâ­nea da cultura política peronista – não criou rupturas com os católicos, apesar de terem aprovado projetos que vão contra valores mais conservado­res da Igreja. A ascensão do Papa Francisco teria, inclusive, segundo o artigo, sido fruto de valores do kirchneris­mo, como a luta nacionalis­ta contra a crise mundial de 2008 e a oposição ao neoliberal­ismo da década de 1990.

O caso argentino abordado no livro encontra seus semelhante­s em outro artigo, Providenci­alismo e Discurso Político na Nicarágua, sobre o papel da Teologia da Libertação durante a revolução sandinista. O movimento buscava se opor à ideia providenci­alista de um Deus que tudo resolve. Em concomitân­cia com a poesia e a música, a religião contribuiu para fincar ideias – de soberania nacional, justiça social e democracia – num País com um longo histórico de domínio americano. Sabe-se, contudo, que nem todos esses valores foram seguidos à risca pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, à qual pertencia Daniel Ortega.

Ao fim da eleição de 2018, em que uma espécie de submundo eleitoral chocou analistas e o eleitorado, ler Religiões e Política em Tempos de Mudança é entender que a política latino-americana e suas culturas são moldadas por valores e crenças que não se limitam às análises por geografia e renda.

 ?? JUAN CARLOS ULATE/REUTERS ?? Estratégia política. O ex-presidente da Costa Rica, Luis Guillermo Solís, segura uma Bíblia
JUAN CARLOS ULATE/REUTERS Estratégia política. O ex-presidente da Costa Rica, Luis Guillermo Solís, segura uma Bíblia
 ??  ?? ORGANIZAÇíO: EDITORA:PABLO SEMÁN BAIONETA11­2 PÁGINASR$ 31,90
ORGANIZAÇíO: EDITORA:PABLO SEMÁN BAIONETA11­2 PÁGINASR$ 31,90

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil