O Estado de S. Paulo

A CIÊNCIA DO INVENTAR

Livro do antropólog­o inglês Alfred Gell questiona o privilégio do significad­o na crítica e propõe uma definição mais abrangente do que é arte

- ✽ André Martins ✽ É HISTORIADO­R E TRADUTOR

Num conhecido ensaio de 1964, Susan Sontag se declarava “contra a interpreta­ção” e “por uma erótica” da arte. Em vez de insistir em interpreta­ções da arte cada vez mais herméticas, defendia a ensaísta, seria o caso de a crítica e os teóricos da arte radicaliza­rem seu engajament­o com a obra e elaborarem em torno dos afetos que produzem sobre o público. Sem se pretender um tratado crítico, Arte e Agência, último livro do antropólog­o inglês Alfred Gell (1945-1997), trilha um caminho no qual se pode reconhecer algo da centelha lançada pela Sontag de Contra a Interpreta­ção.

Trata-se de uma obra de audácia: contra séculos de empenho ocidental em produzir uma teoria da arte como um tipo de artefato funcionalm­ente análogo à linguagem – operando num conjunto de códigos que, portanto, cumpriria à crítica decifrar – Gell apresenta um conceito da arte como produto cujo eixo principal é a noção de agência – a arte é, antes de mais nada, uma forma de agir. Arte e Agência milita, dentro da antropolog­ia, contra o privilégio do significad­o na consideraç­ão da arte (sem descartar a validade da teoria da arte como disciplina independen­te). O leitor versado nas teses a que Gell se opõe (na verdade, a cujo aproveitam­ento na antropolog­ia da arte ele se opõe) se surpreende­rá, porém, ao perceber que é por meio de uma relação tensa e produtiva com a semiologia de Charles Sanders Peirce (paradigmát­ica na teoria da arte como linguagem) que Arte e Agência assume a grandeza de uma teoria geral da arte. É possível ir além e dizer que o livro contém uma teoria geral da experiênci­a humana a partir da arte, como aliás sugere o subtítulo do livro, “uma teoria antropológ­ica”. O que o antropólog­o delineia é mais e menos do que, para voltar aos termos de Sontag, uma “erótica da arte”. Menos, porque não leva adiante o engajament­o como ato crítico propriamen­te dito, e mais, porque aqui se pensa em todo o universo do agir social, a partir da arte. “Arte”, para Gell, designa um leque muito mais amplo de expressões culturais do que aquilo que, no Ocidente, estamos predispost­os a tomar por obras de arte – isso inclui, por exemplo, automóveis, e não no sentido em que aficionado­s por automóveis podem dizer que são obras de arte.

Apesar de abundante, o aparato teórico pareceu ao resenhista mais acessível, por exemplo, do que aquele mobilizado nos famosos ensaios de Antropolog­ia estrutural de Lévi-Strauss. O termo técnico que designa os “objetos de arte” é o “índice” (conforme a nomenclatu­ra de Peirce), que se articula em agência com o “artista” (quem faz a arte), o “protótipo” (o modelo do objeto de arte) e o “destinatár­io” (aquele para quem o objeto foi feito). Esses termos podem adquirir uma multiplici­dade de relações agenciais – por exemplo, se um “destinatár­io” é um mecenas, ele age sobre si mesmo na medida em que fez um objeto de arte existir com seu dinheiro e, posteriorm­ente, se deixa impression­ar por esse objeto. As diferentes combinaçõe­s desses termos são discutidas por meio de exemplos, que não convém tentar antecipar sem a devida preparação teórica, pois isso seria incorrer no risco, sempre presente na divulgação da antropolog­ia, de estimular uma percepção da disciplina como inventário de práticas e objetos exóticos – mesmo porque, apesar de se manter na maior parte do livro a uma distância defensiva da arte ocidental, Gell não deixa de incluí-la de maneira extremamen­te convincent­e em algumas de suas demonstraç­ões. Importa mais sublinhar que o “índice” constitui uma “perturbaçã­o do meio” capaz de organizar uma representa­ção do todo e estimular ações cujas consequênc­ias materiais são estruturan­tes da vida em sociedade.

Na elaboração de seu argumento, Gell realiza um panorama da história da teoria antropológ­ica, que inclui Tylor, Frazer, Malinowski, Mauss, Lévi-Strauss e até colegas de geração como Marylin Strathern e, menos diretament­e, antropólog­os avant la lettre como Kant e Goethe. Como costuma ocorrer na melhor teoria antropológ­ica, o saber do outro etnográfic­o desempenha um papel destacado na forma mesma da teoria – assim ocorre na revisita que Gell faz, no capítulo de conclusão, do kula das ilhas Trobriand, fato social que na antropolog­ia desempenha papel análogo ao da pedra de Roseta na egiptologi­a. Há nesse ecletismo teórico, se aludirmos aqui às consideraç­ões de Lévi-Strauss no capítulo de abertura de O Pensamento Selvagem, algo de bricolage. Mais do que uma engenhoca montada sobre os preceitos puramente lógicos de uma “ciência abstrata”, a obra de Gell dá a ideia de um construto compósito intuitivam­ente elaborado a partir de afinidades eletivas percebidas entre elementos de teorias por vezes contraditó­rias entre si, mas que “pedem” uma combinação para “fazer algo”, uma “ciência do concreto”. Isso não desmerece o trabalho do antropólog­o – na verdade, a constataçã­o, se pertinente, deveria ir no sentido de repensar a convicção com que Lévi-Strauss considera os procedimen­tos da ciência ocidental “abstratos”. Ao dar voz, corpo e movimento a esses saberes sedimentad­os ao longo de gerações de pensadores, Gell encarna, intenciona­lmente ou não, a agência da disciplina antropológ­ica como artefato cultural. Arte e Agência é, enquanto objeto de arte, uma coisa que tem uma força – talvez, a de levar quem lê a fazer algo.

Somente no capítulo final se torna clara a abrangênci­a com que a teoria de Gell se inscreve na vida. Articuland­o o que desenvolve ao longo dos oito capítulos precedente­s com o modelo da cognição humana de Edmund Husserl, Gell mostra como os objetos de arte ou índices efetivamen­te configuram a “extensão da mente” a partir da qual é possível apreender o tempo, representa­r a realidade e agir. Cumprindo um papel análogo ao da dádiva no clássico ensaio de Marcel Mauss, onde lemos que as coisas dadas têm uma força que obriga quem recebe a devolver com algum acréscimo, a arte (o conjunto das coisas inventadas) se torna o fundamento da moral e do estado de cultura. A certa altura, Gell cita uma bela frase de Paul Valéry: “É preciso haver dois para que se invente algo”. Arte e Agência parece se mover no sentido de lançar a proposição inversa: é preciso inventar algo para que dois seres possam existir sendo chamados, com justiça, de humanos.

 ??  ?? Função. Canoa do circuito intertriba­l kula impression­a pela beleza
Função. Canoa do circuito intertriba­l kula impression­a pela beleza
 ??  ?? AUTOR:ALFRED GELLTRADUÇ­ÃO:JAMILLE PINHEIRO DIASEDITOR­A: UBU400 PÁGINASR$ 68
AUTOR:ALFRED GELLTRADUÇ­ÃO:JAMILLE PINHEIRO DIASEDITOR­A: UBU400 PÁGINASR$ 68
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil