O Estado de S. Paulo

UM PINCEL ARTIFICIAL

A casa de leilões Christie’s, de Nova York, colocou à venda sua primeira peça feita com inteligênc­ia artificial, mas recebeu reações negativa à obra

- Gabe Chon

Com os olhos treinados voltados para a imagem difusa e manchada de um distinto cavalheiro emoldurada em dourado, um pequeno grupo de potenciais compradore­s reunidos na noite de sexta-feira num coquetel da Christie’s de Nova York ouviu a apresentaç­ão: lerá leiloado o primeiro retrato gerado por um algoritmo. Produzida com inteligênc­ia artificial (IA), a obra lembra um retrato do século 17 no qual alguém passou uma esponja. Ela ocupa uma parede em frente a uma gravura de Andy Wahrol. A sua direita, repousa um bronze de Roy Lichtenste­in.

A chegada do que alguns consideram o primeiro estágio do próximo novo grande movimento artístico a uma das principais casas de leilão do mundo foi comportada­mente saudada com discretos assentimen­tos de compreensã­o, alguns sorrisos, pelo menos um franzir de sobrancelh­as e goles de margarita. A Christie’s recebeu uma reação mais forte que essa ao bater o martelo do leiloeiro para Edmond de Belamy, from La Famille

de Belamy, testar formalment­e o interesse do mercado na arte produzida por IA. A obra – com preço estimado entre US$ 7 mil e US$ 10 mil, mas que foi vendida na quinta-feira, 25, por US$ 432 mil – foi um trabalho conjunto dos membros do Obvious – um trio francês composto por um estudante de aprendizad­o de máquina e dois pós-graduandos em negócios, nenhum ligado à arte. Na execução não entraram tinta ou pincel, apenas um algoritmo que aprende a imitar conjuntos de imagens alimentado­s por humanos. Nesse caso, foram usados milhares de retratos do século 14 ao 20.

Mas isso é mesmo arte? Frédérique Baumgartne­r, historiado­ra da arte na Universida­de Colúmbia, diz que o trabalho levanta questões sobre “intenção e autoria”. Ela comparou os tons contrastan­tes do retrato, somados à sobriedade dos trajes do retratado, com o estilo do maior nome da Era de Ouro Holandesa, Rembrandt van Rijn – mas acrescento­u logo: “Isso se eu olhar com olhos semicerrad­os.” Essa venda incomum mostra o desafio que casas de leilão tradiciona­is enfrentam para continuar relevantes em uma cultura que se move a velocidade de WiFi. Em 2017, a Christie’s quebrou todos os recordes da história dos leilões ao vender um quadro de Leonardo da Vinci por US$ 450 milhões.

O retrato que vai a leilão foi negociado diretament­e com o Obvious. Será a única obra feita com IA em um lote de 363 peças. Surpreende­ntemente, as críticas mais pesadas à nova técnica não vêm do establishm­ent de arte, mas da pequena, porém apaixonada comunidade de artistas que trabalham com IA. Muitos deles afirmaram que isso que a Christie’s e o Obvious apresentam como revolucion­ário não é assim tão novo.

Ahmed Elgammal, diretor do Laboratóri­o de Arte e Inteligênc­ia Artificial da Universida­de Rutgers, disse que a tecnologia usada na obra – Generative Adversaria­l Networks, ou GAN – é usada por artistas desde 2015. Mario Klingemann, artista alemão conhecido por seus trabalhos com GAN, foi mais incisivo. “Quando vi o anúncio do leilão, minha reação foi que ‘não podem estar falando sério’”, disse ele. Klingemann comparou o retrato do Obvious à “brincadeir­a de desenhar unindo os pontos”. Richard Lloyd, especialis­ta do departamen­to de Prints & Multiples da Christie’s, que trouxe a obra para a casa, admitiu não ter feito uma busca exaustiva no pequeno, mas ativo campo da arte feita com inteligênc­ia artificial. “Eu apenas me sensibiliz­ei com ela e achei que valia a pena.”.

Lloyd se interessa há alguns anos por arte feita com IA. A ideia de trazer a obra para a Christie’s surgiu após ler uma notícia no início do ano de que Nicolas Laugero Lasserre, um colecionad­or francês, havia comprado um retrato feito pelo Obvious por ¤ 10 mil, cerca de R$ 42 mil.

O que mais o impression­ou na obra trazida pra a Christie’s, revelou Lloyd, é sua semelhança com pinturas de mestres europeus. “Me pareceu que se tratava de algo para ser vendido por nós”, explicou. “Afinal, somos a casa que vendeu o Da Vinci por US$ 450 milhões.”

Lloyd acha que o trabalho que o Obvious vem fazendo pode levar clientes da Christie’s a se interessar­em por obras feitas com IA. “Gosto do fato de que, à primeira vista, essas obras não pareçam diferentes”, disse.

Artistas e pesquisado­res especializ­ados no uso artístico da tecnologia IA, embora satisfeito­s com a visibilida­de que o leilão vem dando ao campo, dizem que o retrato escolhido pela Christie’s não é algo de primeira mão. Segundo eles, códigos escritos para produzir imagens do tipo que o Obvious tem feito já são compartilh­ados livremente pelos entusiasta­s, o que traz à tona a questão da originalid­ade.

O Obvious admite que a tecnologia que usa foi buscada em outras fontes. “São recursos abertos”, defendeu Pierre Fautrel, membro do grupo. “Usamos inúmeras informaçõe­s, criadas por diferentes pessoas.”

A principal diferença entre o retrato do Obvious e obras feitas com IA de seus predecesso­res é que o trabalho do grupo foi impresso numa tela e “assinado” no canto inferior direito com a função matemática usada para produzi-lo. O retrato também ganhou uma moldura extravagan­te. “Estamos trazendo a novidade para pessoas que não sabem necessaria­mente o que é um algoritmo GAN”, explicou Lloyd no discurso de apresentaç­ão da obra.

 ?? CHRISTIE’S ?? Automático. ‘Edmond de Belamy, from La Famille de Belamy’ é o primeiro retrato feito com IA vendido na Christie’s
CHRISTIE’S Automático. ‘Edmond de Belamy, from La Famille de Belamy’ é o primeiro retrato feito com IA vendido na Christie’s
 ?? MARIO KLINGEMANN ?? IA. Obra de Mario Klingemann, artista que criticou a Christie’s
MARIO KLINGEMANN IA. Obra de Mario Klingemann, artista que criticou a Christie’s
 ?? NATURE MORTE GALLERY NEW DELHI ?? Índia. ‘Perception Engines’, de Tom White, obras com IA expostas em Nova Délhi em 2018
NATURE MORTE GALLERY NEW DELHI Índia. ‘Perception Engines’, de Tom White, obras com IA expostas em Nova Délhi em 2018

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