Foco na didática para o ensino em outra língua
Fluência e gosto por um idioma estrangeiro depende de combinar método, abordagem e técnica, apostam escolas bilíngues
Nada de abrir a apostila e decorar a conjugação do verbo “to be” ou de simular jograis nos quais uma criança pergunta à outra se ela tem “brother and sisters”. Esse tipo de didática, comum por décadas, está ultrapassada nas escolas de ensino bilíngue. Garantir a fluência e o gosto por uma segunda língua pressupõe um ensino que coordena método, abordagem e técnica.
“A escola que acredita que usar a língua ali na sala de aula com a criança, na crença de que ela fará o resto do ‘serviço’, está desinformada a respeito de décadas de pesquisa na área”, afirma Marcello Marcelino, doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador de bilinguismo. “É preciso elementos que garantam, de forma natural, uma excelente exposição e uso da linguagem na escola. Daí a necessidade de um programa linguístico estruturado.”
A pequena Lorena, de 6 anos, nunca nem foi informada formalmente de que teria aulas em inglês. O idioma de
Frozen entrou na cabeça e saiu fluente pela fala antes, sem que ela se desse conta, aos 4 anos. Numa brincadeira despretensiosa com água e areia, por exemplo, a professora ensinou a turma a moldar animais. Quando percebeu, a menina já sabia que a ovelha era “sheep” e que o cavalo também atendia por “horse”.
“Temos salas de música, tanques de água e areia, laboratórios de ciências e experimentos. São locais repletos de estímulos para que o aprendizado da segunda língua seja o mais natural possível”, explica Cintia Sant’Anna, diretora acadêmica da rede Maple Bear.
Com cerca de cem escolas pelo País e aproximadamente 11 mil alunos matriculados na educação infantil, a rede desenvolveu esses espaços temáticos denominados centros de aprendizagem. “A ideia é proporcionar um ambiente em que as crianças se sintam seguras e autônomas, se sintam estimuladas, não tenham medo de errar.”
Desenvolvimento. Antes de chegar por ali, Lorena estudava em outra escola bilíngue. Com aulas tradicionais, o aprendizado da garota se resumia a uma ou outra frase decorada e pouco entendimento do idioma. “Agora, sinto a evolução dia após dia”, conta a mãe, a publicitária Priscila Ferraz. “No início, eu perguntava em inglês, ela respondia em português. Agora, na alfabeti-
O desafio da escola bilíngue é se repensar, se reorganizar para oferecer experiências de aprendizagem que atraiam esse novo aluno: conectado e sem interesse em aprender de forma passiva. Lady Christina Sabadell,
diretora-geral da Escola Pueri Domus
zação, ela já responde em inglês, além de cantar e até opinar quando meu marido e eu decidimos conversar um assunto reservado em inglês.”
Protagonismo. Se o ensino dos pequenos é quase que por osmose, conforme a idade aumenta é preciso diversificar a metodologia – sempre de forma a fugir da apostila e daquela famosa lista de verbos irregulares que fazia parte do modelo tradicional de ensino. “A partir do ensino fundamental, lidamos com uma geração guiada pela velocidade de absorção do mundo, com um foco de atenção em média de 15 minutos e totalmente inserida em um universo digital”, afirma Lady Christina Sabadell, diretora-geral da Pueri Domus.
Foi para atrair essa clientela que a rede criou uma “trilha de aprendizagem de autogestão”. “Estabelecemos a cada semana um roteiro de ações que envolvem o uso do inglês associado a artes, música, games, danças e outros temas. Ao elaborar as próprias trilhas
Sinto a evolução dia após dia. No início, eu perguntava em inglês, ela respondia em português. Agora, na alfabetização, já responde em inglês, além de cantar e até opinar quando meu marido e eu decidimos conversar um assunto reservado em inglês. Priscila Ferraz, publicitária, sobre o inglês da filha Lorena, de 6 anos
de aprendizagem, os alunos se sentem responsáveis pelo saber e não apenas cumpridores de ordens”, detalha.
A Pueri Domus também aboliu uma prática ainda comum em escolas bilíngues: o uso de idiomas em períodos específicos. “Temos um currículo integrado no qual os dois idiomas estão alinhados. Não usamos uma língua pela manhã e outra durante a tarde porque aí é como se fossem duas escolas monolíngues ao longo do dia. Fazemos a mescla o tempo todo”, explica a diretora.
Quem ensina. Sair das aulas convencionais para uma metodologia de ensino que favoreça o aprendizado de uma segunda língua é um trabalho que implica não só troca de materiais ou ambientes. Antes que a primeira aula no novo formato aconteça, é preciso que os colégios preparem o corpo docente.
É um processo de avanço gradativo. Desde há alguns anos a fluência no idioma já não era suficiente para transformar alguém em professor daquela língua – era necessário saber como ensinar. A mudança agora é formar docentes que se adequem a essa didática que tira o foco do professor e o transfere ao estudante e suas formas de aprendizado.
Atenta a esse público, a Faculdade Cultura Inglesa oferece desde 2016 a pós-graduação em Estratégias e Metodologias do Ensino e do Uso do Inglês, com 10 módulos de 42 horas cada. Pelo menos 40% desses módulos são voltados ao desenvolvimento de novas metodologias para cativar os alunos. “Neles, tratamos de como usar o afeto para maximizar o aprendizado e mostramos a importância de usar a tecnologia para envolver os estudantes. Também abordamos formas de lidar com indisciplina, algo importante para qualquer professor e ainda mais desafiador quando se deve atuar em outro idioma”, explica Lizika Goldchleger, gerente executiva da instituição. As aulas do curso são totalmente ministradas em inglês.
“Isso é muito conveniente para os professores de escolas bilíngues. Eles têm a oportunidade de aprender novas ferramentas didáticas no idioma que já é sua ferramenta de trabalho”, completa Lizika.
Professora de uma turma de 5.º ano do ensino fundamental no colégio Beacon School, Amanda Chiarelo, de 30 anos, está na primeira turma dessa pós-graduação. “Desde que comecei o curso, passei a desenvolver melhor a coesão da sala, principalmente com ações de acolhimento nas semanas iniciais do cursos, o que ajuda os alunos a me conhecerem melhor e a se integrarem.”
No dia a dia, as lições aprendidas no curso de pós-graduação também ajudaram Amanda a tornar seus alunos protagonistas das aulas. “Passei a negociar com eles o tempo das tarefas e das atividades. Além disso, desenvolvo trabalhos em grupo nos quais agrupo estudantes com diferentes habilidades. Isso tem gerado trocas importantes.”
Regras. Apesar do crescimento na oferta do ensino bilíngue no Brasil e da atualização das práticas didáticas no ensino de uma segunda língua, os especialistas afirmam que o fato de o Brasil ainda não ter uma regulamentação clara sobre o bilinguismo é um entrave a ser superado.
“Sem essa regulamentação, a única forma de se avaliar erros e acertos é a partir do que a escola se propõe a fazer e oferecer, partindo do pressuposto que o que é exigido por lei da escola como uma instituição de ensino, de modo geral, já está contemplado”, pondera Marcello Marcelino, doutor em Linguística pela Unicamp e pesquisador de bilinguismo.
Uma regulamentação eficaz, explica Marcelino, deveria levar em consideração ao menos três pontos: a partir de que carga horária diária uma escola se torna bilíngue; como o programa linguístico da segunda língua se coloca lado a lado com o projeto pedagógico; e qual formação é necessária ao professor que vai atuar nesse segmento. “Isso tudo afeta os cursos de formação de professores, que hoje claramente não suprem a necessidade das escolas bilíngues. A formação que existe atualmente é para satisfazer requisitos legais, e não os reais. Estamos atrasadíssimos nisso.”
Isso (falta de regulamentação) afeta os cursos de formação de professores, que hoje claramente não suprem a necessidade das escolas bilíngues. A formação que existe atualmente é para satisfazer requisitos legais, e não os reais. Estamos atrasadíssimos nisso. Marcello Marcelino,
doutor em Linguística pela Unicamp e pesquisador de bilinguismo