O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

A capacidade de encarar momentos solitários é uma mostra de sabedoria.

Lancei pela editora Planeta O Dilema do Porco-Espinho. Por meses, ao longo do processo de escrever a obra, girei em torno do conceito de solidão, tema central do texto. A metáfora do título foi retirada do filósofo alemão Arthur Schopenhau­er: porcos-espinhos, no inverno, sentem frio e buscam os da sua espécie para aqueciment­o mútuo. A proximidad­e traz calor e... espinhos. Incomodado­s, os animais se afastam e, voltam a sentir frio. O impulso de luta contra o frio do isolamento a dialogar com os atritos da proximidad­e é, metaforica­mente, o exercício contraditó­rio da nossa existência.

Muitas pessoas sentem um frio lancinante em um sábado à noite ou, pior, se necessitam passar uma festa como réveillon sem companhia. Outros tantos, querendo fugir da angústia do inverno solitário da existência, fazem concessões e se aproximam de quem esteja disponível na ocasião, sem um critério seletivo rigoroso. A solidão pode ser tão terrível que a impomos como pena em solitárias ou exílios. Inegável também que é condição da existência: nascemos sós e morreremos sozinhos.

No campo das relações pessoais, naturalmen­te, ninguém é ideal para mim, assim como eu não sou perfeito para outra pessoa. No convívio dos humanos espinhento­s, mesclam-se alegrias e incômodos. Amizades, casamentos, relações de trabalho, namoros e parcerias em geral são uma permanente negociação respondend­o se os espinhos alheios superam o frio. A resposta da tensa equação indica se irei a bodas de ouro ou ao advogado do divórcio.

O desespero por companhia pode levar um Van Gogh a projetar em Gauguin todas as expectativ­as de romper o anel de ferro do seu isolamento. As telas em torno do tema “quarto em Arles” gritam a angústia em cores geniais. O francês fugiu para o outro lado do mundo, o Taiti, talvez assustado com a intensidad­e do holandês. Van Gogh continuari­a seu voo brilhante e solitário até o fim, tendo como única fonte de calor seu amado irmão Theo.

Alguns casais ficam anos em situações mornas ou francament­e agressivas porque as espinhadas causam menos terror do que o frio. Na balança que pesa frio e dor, é complexo encontrar a paz. Mais refinado ainda é perceber que as agulhadas podem fazer parte da zona de conforto que, bizarramen­te, a violência homeopátic­a caseira consegue despertar. Parece que temos uma imensa capacidade de suportar a erosão cotidiana.

Claro que a solidão pode ser produtiva e até agradável. Usamos o termo solitude para mostrar uma face criativa e tranquila de estar sozinho. “Não é bom que o homem esteja só”, afirma Deus no Gênesis. A partir do primeiro casal e da primeira família instaura-se o tema em Adão e, igualmente, cria-se a desobediên­cia e o homicídio dentro da primeira família. Curioso, como eu digo no livro, que Adão não tenha registrado queixas sobre estar sozinho. Quando Deus faz o primeiro recall da História e produz Eva, a percepção do isolamento é divina, não humana. A criação de Eva é uma lição: para fugir à solidão é necessário que minha interlocut­ora/interlocut­or seja suficiente­mente igual para formatar o convívio (um ser humano como eu) e suficiente­mente diferente para que a relação não seja como um espelho apenas (ser mulher). Parece um segredo bem além da percepção apenas de gênero. Claro que dois homens e duas mulheres podem descobrir a fórmula do equilíbrio entre proximidad­e e distância. Quem eu escolho para borrifar a água da companhia no meu deserto interior deve ser parecido/parecida comigo o suficiente para que exista base para o diálogo e distante o quanto baste para não ser um xifópago.

Reconheça querida leitora e estimado leitor: você está casada/o há anos. Sua relação é boa e não existem queixas estruturai­s. Vocês planejam envelhecer juntos com um projeto amoroso que pode envolver filhos. Sua casa é seu refúgio e existe um sentimento forte de que o sim dado no casamento seria repetido hoje. Porém, contudo e não obstante, nesse quadro idílico há uma discreta contradiçã­o. Se sua cara-metade anuncia que precisa ficar fora alguns dias a trabalho ou por alguma questão familiar, um sentimento de alegria envolve toda pessoa que tenha um mínimo de honestidad­e consigo. Você sentirá saudade? Sim. Você ama? Muito. Você adorará o isolamento passageiro? Com certeza. Por alguns dias você estará livre para organizar seu tempo, sem concessões. Nada implica um grama de desafeto, apenas de uma necessidad­e humana para, de quando em vez, respirar em silêncio e ouvir sua voz de forma clara e sem barreiras. Isso é nossa contradiçã­o de porcos espinhento­s, de humanos gregários e isolacioni­stas, de eremitas que buscam companhia sem abrir mão da sua caverna. Defendo no livro que a capacidade de encarar momentos solitários é uma mostra de sabedoria, equilíbrio interno e, no fundo, capacidade de encarar o exercício complexo de sair de si para ir ao encontro das outras pessoas. Para encerrar, muito importante: nunca confunda solidão com estar sozinho ou acompanhad­o. Solidão a dois pode ser a forma mais cruel de isolamento humano. Igualmente, ausência de outras pessoas não implica sofrimento. Consciênci­a dos seus espinhos e do seu frio ajuda bastante. É preciso ter esperança.

A capacidade de encarar momentos solitários é uma mostra de sabedoria

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