O Estado de S. Paulo

Associação entre PT e minorias trouxe para elas a desconfian­ça do homem comum. Faria bem um tempo de reflexão.

- FERNANDO GABEIRA

Avitória de Bolsonaro não é idêntica à de Trump. Mas antes e depois das duas eleições há pontos de contato. Não servem para explicar tudo, mas ajudam. Um dos livros em que encontro as semelhança­s é de Mark Lilla, uma crítica aos liberais com um subtítulo interessan­te: Depois das políticas de identidade. A julgar pelo livro de Lilla (The Once and Future Liberal: After Identity Politics), a vitória de Trump suscitou o mesmo movimento nos EUA e no Brasil: resistênci­a. Lilla põe essa palavra entre aspas, pois significa uma oposição a tudo o que Trump representa, sem ainda uma visão clara de futuro.

A vitória de uma figura controvert­ida acabou despertand­o nos EUA uma grande solidaried­ade entre os derrotados, campanhas, marchas, abaixo-assinados. Mas ainda são raras aqui, no Brasil, onde Bolsonaro acaba de vencer, as visões críticas do período que abriu o caminho para que ele triunfasse.

Lilla fala no descaminho dos democratas por se terem fixado nas políticas identitári­as: mulheres, homossexua­is, indígenas e negros. Não que seja contra essas lutas.

Sua análise da campanha republican­a mostra que na maior parte do tempo ela se fixava em temas nacionais, que interessam a todos. O exame do site democrata, no entanto, revela grande peso às lutas fragmentár­ias, que interessam a setores bem específico­s do eleitorado.

Lilla considera um erro a fixação nas lutas identitári­as porque elas afastam um pouco as pessoas dos temas mais amplos, que envolvem o bem comum. As pessoas mergulhada­s nessas lutas têm tendência menor a defender temas nacionais, sair para uma conversa nas ruas sobre o que ele chama o bem comum.

Coincidênc­ia ou não, eu já tinha manifestad­o em artigos a mesma reserva quanto ao alcance das lutas identitári­as na eleição brasileira. Também na minha crítica ressaltava a ausência da ênfase no bem comum, só que nos meus textos não usava essa expressão, mas a adesão a um projeto nacional.

Num artigo afirmava que as lutas que ainda chamam das minorias tendem a criar a necessária solidaried­ade de grupo, regras e objetivos próprios. Mas ela se dá em oposição a uma sociedade que ainda não reconhece esses direitos.

Torna-se muito difícil conversar com o homem comum, encontrar um assunto que mobilize todos, e não apenas alguns setores da sociedade. No caso brasileiro, os três grandes temas nacionais em jogo passaram um pouco ao largo das forças de esquerda. Um deles era a corrupção. A esquerda o subestima de modo geral e o escamoteia especifica­mente quando o PT é o maior acusado.

Um segundo grande tema nacional foi a segurança. A visão clássica e tradiciona­l da esquerda é condicioná-la à melhoria das condições econômicas, da educação, da renda. Como a expectativ­a é de respostas em curto prazo, o discurso cai no vazio e é facilmente ironizado.

Um terceiro tema, mais intelectua­lizado, foi a discussão sobre o tamanho e o papel do Estado na economia. Também aí a perspectiv­a privatizan­te pareceu mais atraente. E não só pela teoria. As manifestaç­ões de 2013, em parte, revelaram a precarieda­de dos serviços públicos.

A corrupção também passou a ser uma chave para explicar o fracasso do governo. Tenho a impressão de que é a conversa na rua quando não se tem nada a dizer sobre aqueles temas.

Uma das caracterís­ticas da luta identitári­a é a autoexpres­são: sou gay, negro ou indígena e tenho orgulho de minha condição. Isso é irretocáve­l na posição pessoal. No entanto, Lilla observa em seu livro que numa campanha eleitoral não é a autoexpres­são que conta, mas a persuasão.

O exemplo que usa para definir o comportame­nto dos liberais nos EUA talvez seja aplicado também à esquerda brasileira. Lilla compara as eleições à pesca. É preciso acordar cedo e pescar até tarde, lá onde o peixe existe, e não onde você gostaria que estivesse. Se o peixe morde a isca e se debate, dê linha e espere que se acalme.

Mas, para o escritor, os liberais ficaram na praia discorrend­o sobre os problemas do mar, sobre a necessidad­e de a vida aquática abrir mão de seus privilégio­s. Tudo na esperança de os peixes confessare­m coletivame­nte seus pecados e nadarem mansamente para ser pescados. Se esse é o seu enfoque da pesca, lembra Lilla, o melhor é se tornar vegetarian­o.

Nesta altura, não se podem comparar totalmente as táticas. No caso brasileiro, se, de um lado, a luta identitári­a pode ter dificultad­o um pouco a conquista da maioria, o caminho eleitoral das minorias acabou compromete­ndo o seu futuro. Isso simplesmen­te porque no tema central, a corrupção, o PT, embora não seja o único, é o maior acusado. A associação entre o partido e as minorias acabou trazendo para elas também a desconfian­ça do homem comum.

Não sei ainda como as coisas se vão recompor. Se as lideranças minoritári­as fizerem uma análise do que se passou, creio que um dos seus passos será libertar-se de governos. Para isso é preciso ter uma nova visão da importânci­a dos recursos materiais na política. O período que se encerra foi marcado por campanhas milionária­s. O PT venceu com uma em 2002 e não reaprendeu o caminho da austeridad­e.

A vitória de Bolsonaro, a julgar pela de Trump, deve suscitar um grande movimento, que até lembrou aos liberais americanos que eles têm mais energia do que suspeitava­m.

Aqui, no Brasil, enquanto estiverem gravitando em torno de um partido acusado de corrupção, os simpatizan­tes da esquerda podem até descobrir uma energia insuspeita­da. No entanto, a chance de essa energia se dissolver em vão é muito grande, sobretudo se as pessoas não pararem um segundo para pensar, achando que o momento é como a Quarta-Feira de Cinzas em Salvador, onde todos saem às ruas cantando e dançando as mesmas músicas do carnaval que passou.

Faria bem um tempo de reflexão, estudos e debates. Foi tudo tão rápido e, para alguns, tão surpreende­nte que, a rigor, nem o governo nem a oposição sabem precisamen­te o que fazer.

Associação entre o PT e as minorias trouxe para elas a desconfian­ça do homem comum

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