O Estado de S. Paulo

Duas décadas do regime de metas para a inflação

- ALKIMAR R. MOURA

Oobjetivo deste artigo é comentar brevemente o funcioname­nto do regime de metas, que tem sido um dos instrument­os de política monetária mais utilizados pelos bancos centrais para combater a inflação. Sua utilização se ampliou para vários países após a bem-sucedida experiênci­a da Nova Zelândia e da Austrália, em meados da década de 1990, e atualmente cerca de 26 economias adotam esse regime. Alternativ­amente, ele tem sido acusado de ser responsáve­l pelas crises financeira­s em vários países nos anos 2007-2008, ao focar exclusivam­ente na busca de estabilida­de de preços, negligenci­ando desequilíb­rios que podem ocorrer no mercado de ativos financeiro­s.

No Brasil, foi implantado formalment­e em junho de 1999, estando próximo de completar 20 anos. Uma avaliação de seu desempenho merece um estudo mais aprofundad­o de nossos economista­s, na academia ou nas áreas de pesquisa das instituiçõ­es financeira­s, ou ainda nas páginas da imprensa especializ­ada. Aqui busco apenas indicar alguns pontos que provavelme­nte merecem ser incluídos nesse estudo.

A implementa­ção se deu em resposta às crises cambiais que contribuír­am para tornar inviável o regime anterior de taxas fixas de câmbio, com livre mobilidade de capitais. Mesmo a introdução de uma regra de minidesval­orizações periódicas da taxa de câmbio, no Brasil, em meados da década de 1970, não foi suficiente para evitar crises de balanço de pagamentos, num período de sucessão de choques externos que afetaram a economia brasileira (primeiro e segundo choques de petróleo e choque de taxa de juros). Assim, após adotar o regime de flexibilid­ade cambial, em julho de 1999 o Brasil adotou um regime monetário compatível – o de metas da inflação –, que persiste até hoje, tendo sido um dos primeiros países em desenvolvi­mento a adotar tal regra de política monetária.

O regime de metas inflacioná­rias no Brasil caracteriz­a-se por combinar um único objetivo e um único instrument­o, vale dizer, taxa de inflação e taxa de juros de curto prazo, controlada pelo Banco Central (BC). Eventualme­nte, em situações de estresse no sistema bancário, a autoridade monetária tem executado a gestão monetária combinando mudanças na taxa básica de juros com alterações nos depósitos compulsóri­os sobre os depósitos bancários nas instituiçõ­es bancárias e também mediante modificaçõ­es na política de redesconto. Assim, o BC utilizou esse regime com muita flexibilid­ade, observando duas regras simples de política econômica: a primeira diz que novos objetivos demandam novos instrument­os e a segunda exige o emparelham­ento correto entre objetivos e instrument­os.

Nestas duas décadas de funcioname­nto, o regime de metas foi submetido a vários choques, de origem externa ou interna, que significar­am, em alguns casos, uma razoável pressão sobre seus fundamento­s. Entre esses choques estão os seguintes, todos ligados às transições governamen­tais no período de 2003 a 2018.

Transição do governo FHC para o governo Lula I (2003 a 2007) – A primeira mudança foi certamente a mais emblemátic­a e arriscada, com a eleição do candidato oposicioni­sta. Mas, ao manter a política econômica de seu antecessor, Lula preservou o regime de metas nas duas administra­ções petistas, embora uma meta “ajustada” tenha sido definida para 2003 e 2004, respectiva­mente 8,5% e 5,5% para aqueles dois anos.

Governo Lula II (2007 a 2011) – A segunda administra­ção de Lula enfrentou os efeitos da crise financeira internacio­nal de 2007-2008 (crise do subprime), o que represento­u para o Brasil a parada súbita nos fluxos de capitais para o País. Todos os instrument­os convencion­ais de política monetária foram utilizados: mudanças nas taxas de reserva mínima, assistênci­a financeira em reais e em dólares; além de medidas não convencion­ais (utilização de recursos do Fundo Garantidor de Crédito) para provisão de liquidez ao mercado bancário, permissão para que Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal tivessem flexibilid­ade operaciona­l para comprar participaç­ões acionárias em empresas financeira­s.

Transição do governo Lula II para o governo Dilma I – A primeira administra­ção da presidente Dilma já indicou seus impulsos heterodoxo­s, com a introdução de controles sobre tarifas públicas e preços administra­dos e pressão sobre o BC para a redução da taxa Selic (20112015). Lamentavel­mente, a autoridade monetária curvou-se à determinaç­ão do Executivo.

Dilma II e o impeachmen­t (2015 a 31/8/2016) – Sem base legislativ­a suficiente e sem apoio popular, Dilma experiment­ou um processo de impeachmen­t, certamente um dos mais patéticos experiment­os da nossa História republican­a.

Governo Temer (31/8/2016...) – O retorno à racionalid­ade econômica constitui o eixo das políticas públicas na nova administra­ção, com a promessa das reformas econômicas necessária­s, do avanço da privatizaç­ão e da desregulam­entação. O principal desafio macroeconô­mico, no entanto, reside nos desequilíb­rios fiscais nos três níveis de governo, que certamente não serão atacados no tempo que resta à administra­ção Temer.

Procurei, aqui, demonstrar que o regime de metas inflacioná­rias mostrou sua resiliênci­a ao ser submetido a vários choques políticos ligados às transições governamen­tais no Brasil, no período de 2003 a setembro de 2018. Pode-se arguir que tais transições, mesmo quando se deram com mudanças nos partidos situacioni­stas, não implicaram mudanças substantiv­as nas políticas econômicas ou na independên­cia operaciona­l do BC (a menos da tentativa dilmista de reduzir a taxa de juros a fórceps).

Não parece exagerado dizer que acabamos de viver uma das mais dramáticas eleições presidenci­ais do período pós-ditadura militar. Espero que haja o compromiss­o do eleito de manter a independên­cia operaciona­l do Banco Central e que este continue a praticar o regime de metas da inflação, que tão bem tem servido à economia e à sociedade brasileira­s.

Espero que o BC continue a praticá-lo, pois tem servido bem à economia e à sociedade

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil