O Estado de S. Paulo

Bolsonaro e a agenda da educação

- JOÃO BATISTA ARAUJO E OLIVEIRA PRESIDENTE DO INSTITUTO ALFA E BETO

Pouco sabemos sobre a agenda do presidente eleito, Jair Bolsonaro, para a educação – pouco foi dito, pouco foi perguntado, muito foi especulado. Eis alguns desafios que deveriam merecer a atenção do novo governo.

Primeiro vem o financiame­nto da educação, Estados e municípios estão para lá do limite de gastos. A situação vai se agravar dentro de poucos anos, quando a folha de pagamento dos aposentado­s ficar maior que a dos ativos – e para ela não existe Fundef. O Plano Nacional de Educação funciona como gasolina para apagar incêndio e sua necessidad­e e exequibili­dade precisam ser repensadas. Feito isso, restará, no contexto da crise fiscal, encaminhar propostas para o futuro do Fundef, discussão necessaria­mente amarrada à reforma fiscal e à clareza sobre atribuiçõe­s dos Estados e municípios.

Em paralelo vem a forma de lidar com Estados e municípios. Até aqui o Ministério da Educação (MEC) vem atuando na base de programas – caros, ineficazes e sem continuida­de – e isso explica a dramática situação da educação. Por outro lado, é forte a pressão para constituir um nebuloso “sistema nacional de educação”, com forte ranço de corporativ­ismo e apoiado em conhecidas técnicas de aparelhame­nto da burocracia estatal. O que e como fará o MEC?

Depois vem a reforma do ensino médio. Ela está em curso e há forte pressão do governo federal para os Estados aderirem. A intenção da reforma tem um único mérito: abrir espaço para o ensino médio técnico. Mas mesmo isso está mal definido. E todo o resto é capenga: os conceitos, os currículos, o aumento da carga horária. Uma cirurgia em alguns dispositiv­os da lei da reforma do ensino médio e uma ação competente nas orientaçõe­s curricular­es poderiam tornar viável uma virada positiva, mas tudo isso requer extrema agilidade e perícia. Uma decorrênci­a específica dessa reforma é o futuro do Enem, que está clamando por profundas revisões.

Outro desafio é a Base Nacional Comum Curricular. Os dois principais candidatos à Presidênci­a viram nela instrument­os para o controle ideológico da educação. As opções são conhecidas: trocar uma ideologia por outra – já que não existe neutralida­de – e implantar remendos do tipo “cursos de moral e cívica”, de eficácia duvidosa. Uma terceira via seria mais produtiva: editar e apresentar uma versão simples, clara e objetiva da base nacional curricular, como fizeram os países mais avançados. Bons modelos não faltam.

Decisões acertadas sobre os tópicos acima não apenas servirão para sinalizar os rumos do governo, mas permitirão, ou não, recursos e espaços para o encaminham­ento de novas propostas. O governo Bolsonaro parece mover-se entre dois campos. De um lado, as propostas liberais para a economia, que, se levadas a fundo, poderão trazer importante­s mudanças para a educação. De outro, há as questões ideológica­s.

A questão ideológica referese ao modelo de sociedade que queremos – e ao papel do governo e da escola. Focar nesse tema é guerra perdida. Há mais de 50 anos Hannah Arendt anteviu os problemas que começavam a aflorar na educação norte-americana e previu com acuidade o que viria a ocorrer nos anos posteriore­s. Olga Pombo revisitou e atualizou essas questões em sua magistral obra O Insuportáv­el Brilho da Escola, na qual ela mostra a realidade e as consequênc­ias de uma escola que se afasta cada vez mais de sua missão de ensinar. Isso acontece porque os marcos de nossa convivênci­a em sociedade ruíram – e não é a primeira vez. Impérios, culturas e civilizaçõ­es têm data de validade e o que conhecemos como “civilizaçã­o ocidental” já começou a ruir faz tempo.

Nesse contexto de desconstru­ção, o politicame­nte correto surgiu como tentativa de alertar sobre o risco de ofender suscetibil­idades numa sociedade que começou a se tornar mais plural. Mas se converteu em odioso mecanismo de censura e policiamen­to da linguagem. E, pior, tornou-se interioriz­ado nos corações e mentes. Este é um bom momento para ler ou reler livros como The Language Police, de Diane Ravitch, que demonstra como o patrulhame­nto da linguagem foi internaliz­ado nos currículos e livros didáticos. Ou saborear o politicame­nte incorreto livro de Anthony Esolen Ten Ways to Destroy the Imaginatio­n of your Child. Para ter um gostinho, eis o título do capitulo 4: Substitua os contos de fadas por clichês e modismos políticos OU vote cedo e frequentem­ente.

É nessa caixa de marimbondo­s – ou ninho de víboras - que o presidente Jair Bolsonaro prometeu mexer. É inviável cortar as cabeças da hidra. Mas não se avança e não se convive sem referentes em comum. Ao comentar sobre a preparação das novas gerações, Harari afirma que nunca foi tão importante levar a sério o “conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates”. Como promover isso sem fundar a escola em nossas referência­s culturais?

A escola não precisa de adjetivos como “com partido” ou “sem partido”. Também não precisa de adjetivos como “com cultura” ou “sem cultura”. A escola – ou que o que resta dela – deve ensinar a pensar, e não ensinar o que pensar. Deve proporcion­ar aos alunos as ferramenta­s para pensar, para refletir sobre o papel deles em um mundo cada vez mais complexo. Isso se faz com um rigoroso currículo com foco no estudo da língua e das nossas raízes e referência­s culturais, da matemática e das ciências; com uma equipe de professore­s recrutados entre os melhores de sua geração; e com um contexto escolar em que se cultivem o trabalho, o mérito, a disciplina, a tolerância, a paz e o respeito. E requer profunda mudança na política do livro didático, para dela retirar o ranço do politicame­nte correto.

Já o vezo liberal do novo governo poderá ensejar gigantesco­s avanços na eficiência da educação e, com isso, promover avanços significat­ivos na qualidade e na redução das desigualda­des. Mas isso seria assunto para outro artigo.

A escola – ou que o que resta dela – deve ensinar a pensar, e não ensinar o que pensar

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