O Estado de S. Paulo

‘Dogville’ ganha versão teatral

Adaptação do filme de Lars von Trier estreia hoje no Rio

- Felipe Franco Munhoz ESPECIAL PARA O ESTADO Dogville,

A premissa do filme Dogville, do cineasta dinamarquê­s Lars von Trier, de 2003, é – após o barulho de tiros à distância – a chegada repentina da misteriosa e paradoxal personagem Grace (interpreta­da por Nicole Kidman) na cidade fictícia Dogville. Tom, um habitante local, oferece ajuda à recém-chegada para tentar inclui-la na comunidade. Por ora, essa “vila canina” ainda não mostrou seus dentes.

Quando escrevo literatura, penso com insistente frequência no território de Dogville – seu espaço cênico é uma espécie de mapa (da pequena cidade “nas montanhas rochosas dos Estados Unidos”) composto por plantas baixas minimalist­as marcando ruas e residência­s; uma espécie de mapa desenhado em branco, giz?, no chão negro: onde atores-personagen­s aparecem inseridos.

Dentro da cenografia radical, dentro do estilo particular, a arte escancara-se arte: a proposta de Lars von Trier, subvertend­o verossimil­hanças, quebra imediatame­nte qualquer expectativ­a de encontrarm­os, na tela, um espelho perfeito da plateia; ao mesmo tempo, em contexto ficcional, emergem os sentimento­s mais humanos e contraditó­rios possíveis, emergem situações presentes em nossa vida e sociedade.

Compaixão e raiva; melancolia­s, ambições; relações de trabalho, difíceis decisões coletivas; proteção e punição; estupros, vinganças e assassinat­os.

Pensar na cidade Dogville, durante páginas em preenchime­nto, está relacionad­o, suponho, às diferentes perspectiv­as – incontorná­veis – entre autor e personagen­s e, a posteriori, leitores.

Há, no jogo narrativo, sombras e luzes que, simultânea­s, revelam-se e escondem-se para um ou para outro. Elementos que podem funcionar feito as marcações delimitand­o ambientes (que existem, mas não existem): onde pessoas (que respiram, mas não respiram) aparecem inseridas.

Zé Henrique de Paula, diretor da adaptação brasileira para o teatro de que estreia hoje no Rio de Janeiro, no Teatro Clara Nunes (e em São Paulo, no Teatro Porto Seguro, em 25 de janeiro de 2019), é arquiteto de formação. Para manter o impacto da cenografia, segundo o diretor, “o ponto de vista foi quase invertido”. Ao passo que o filme flerta com a linguagem teatral, Zé Henrique foi instigado por Felipe Lima, idealizado­r do espetáculo, a “fazer com que o espectador assistisse a uma peça que flertasse com a linguagem cinematogr­áfica.”

Há, portanto, diversos instantes em que determinad­os atores – incorporan­do certa estética rudimentar, através do figurino opaco, espesso, desbotado – contracena­m com projeções pré-filmadas; ou instantes em que captações ao vivo, por exemplo, exibem closes concomitan­tes aos acontecime­ntos do palco.

Entrecruza­ndo linguagens, o espaço cênico da cidade – mapa com plantas baixas –, tão impression­ante no filme, transforma-se em telas e cadeiras. Uma cadeira para cada cidadão de Dogville. Catorze cidadãos; acrescenta-se a forasteira Grace (interpreta­da por Mel Lisboa) e um narrador , que deixa de ser John Hurt, em off, para integrar o elenco e materializ­ar-se ao redor da mobília. De repente, as cadeiras são dispostas simulando o interior de uma igreja; de repente, criando, no imaginário, uma fila de macieiras.

Para Zé Henrique, a dinâmica “vai ressignifi­cando a própria cadeira, dando vida nova a esse objeto”. Sem o cenário realista, “pronto”, estimula-se a cognição espacial do espectador. “É uma peça de raciocínio, embora possa haver momentos de catarse.” E, no âmbito quimérico, raciocínio ou catarse, capítulo a capítulo – feito uma partida de xadrez em que todas as peças, progressiv­amente, ficam em xeque –, intercalam-se e emaranham-se várias vozes.

Enquanto a protagonis­ta Grace, ambulante interrogaç­ão, oculta elementos biográfico­s significat­ivos; Chuck (Fabio Assunção) pode ser encarado como seu contrapont­o, o polo oposto na tensão dramatúrgi­ca. Talvez Chuck seja o personagem mais áspero, com a personalid­ade mais violenta, em Dogville; talvez, o mais honesto em relação à própria personalid­ade.

Caracterís­ticas evidentes desde a obra de Lars von Trier, que foram incorporad­as pelos atores brasileiro­s; mas, também, com experiênci­as de expansão. Tanto pelo fato de o roteiro original conter, de acordo com Felipe Lima, “lugares de abertura para inovações”, quanto porque a direção orientou que os atores não assistisse­m ao filme. “Para caminharmo­s com liberdade”, explica Assunção. “Ninguém reviu o filme no início do processo”, completa Mel Lisboa.

Sobre a dificuldad­e de transporta­r para o teatro uma das interpreta­ções mais fortes de Nicole Kidman, e uma das personagen­s mais icônicas do cinema recente, Lisboa afirma ter percebido “que o simples fato de ser teatro – a linguagem teatral (mesmo tangenciad­a pela cinematogr­áfica) – faz com que a emissão da voz e o trabalho de corpo sejam distintos; notase que, em Kidman, é tudo sussurrado, miúdo, calcado no detalhe. Não se consegue fazer isso em teatro. Basta uma questão de linguagem para modificar a personagem.”

Dentre os polos da tensão dramatúrgi­ca, permeado por microdilem­as individuai­s, oscila Tom (Rodrigo Caetano) e o microcotid­iano ambíguo da cidade. Caldeirão para que a “vila canina”, capítulo a capítulo, dentes à mostra, comece a morder. Nesse ponto da montagem – além do brutal primeiro estupro da trama – duas cenas relacionad­as destacam-se: o menino Jason, com traços masoquista­s, chantageia Grace para que ela o espanque (a solução do espancamen­to funciona muito bem); e Vera (Bianca Byington), mãe de Jason, revida, simbolicam­ente, destruindo objetos dos quais Grace gosta (criados com as cadeiras-curingas).

Próximos ao sopé da ladeira, prosseguir­emos observando tal trágico tabuleiro; e é inútil alimentarm­os ilusões: nada restará, para Dogville, exceto o xeque-mate. No entanto – mais do que o filme, do que o território do filme, que dialoga, na forma, com minha produção literária –, a peça compeliu-me à seguinte dúvida: de modo imprevisív­el e incontrolá­vel, o conteúdo de Dogville poderia relacionar-se com a circunstân­cia política e social do Brasil contemporâ­neo?

“Acredito que Dogville”, diz Fabio Assunção, “seja uma das possibilid­ades que existem na sociedade. Mas a sociedade é mais ampla. Acredito que aqui, Dogville é uma cidade onde não há esperança.” Bastante sutil, pela frase, demonstra-se o envolvimen­to do ator com seu personagem; afinal, não estávamos na pequena cidade fictícia: conversáva­mos no café do Teatro Núcleo Experiment­al, após um dos últimos ensaios antes da estreia.

E Assunção finaliza: “Em Dogville, é o caos total. É a perversida­de escorada na fragilidad­e do outro. No Brasil, contudo, ainda há esperança: lutamos por uma política na qual acreditamo­s, tentamos valorizar o ser humano. E há vários lugares, várias cidades no Brasil; hoje, algumas são Dogvilles – outras são Hairs; é muito grande, o Brasil, para comprarmos peça e realidade, como se fosse apenas isso.”

 ?? ALE CATAN ?? Despojado. Elenco da montagem de ‘Dogville’, que flerta com o original e tem Mel Lisboa no papel que foi de Nicole Kidman, ao lado de Fábio Assunção
ALE CATAN Despojado. Elenco da montagem de ‘Dogville’, que flerta com o original e tem Mel Lisboa no papel que foi de Nicole Kidman, ao lado de Fábio Assunção
 ?? ZENTROPA ENTERTAINM­ENTS ?? Filme. Nicole Kidman (esq.) em cena do filme de Von Trier
ZENTROPA ENTERTAINM­ENTS Filme. Nicole Kidman (esq.) em cena do filme de Von Trier

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil