O Estado de S. Paulo

‘Não acho que vivemos uma caça às bruxas’

Boicotada no mercado, homossexua­l assumida, a gravadora defende ‘o valor da competênci­a’

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Quando fala de suas seis décadas de vida mergulhada na arte brasileira, a gravadora, escultora, pintora, muralista e cenógrafa ítalo-brasileira Maria Luiza Bonomi mais parece uma enciclopéd­ia ambulante da vida cultural do País no século 20. Aos 86 anos, homossexua­l assumida – vive há 16 anos com a fotógrafa Lena Perez –, ela enfrentou problemas por essa escolha, foi presa na ditadura, boicotada no mercado, premiada no exterior e circulou desde os anos 50 entre muitas vanguardas culturais do País sem se filiar a nenhuma. Hoje, tudo somado, ela candidamen­te resume: “Eu fui escolhida por minha profissão, não a escolhi”.

A chegada ao poder de Jair Bolsonaro não a preocupa. “Não acho que estejamos vivendo um tempo de caça às bruxas”, afirma. Ao contrário, avisa que o novo presidente “tem mais o que fazer”. Polêmicas ou perseguiçõ­es à parte, ela faz uma profissão de fé: “O que vale é ser competente”. As agruras que passou ao ser presa, o Brasil que veio à tona nas últimas eleições e as malandrage­ns do mercado atual com os artistas foram alguns dos temas da entrevista que ela deu à coluna durante um descanso na Pousada Tangará, em Trancoso (fotos). A seguir, os principais trechos da conversa.

Você teve uma vida marcada pelo fato de ser homossexua­l assumida, e enfrentou problemas por isso. Acha que, com Bolsonaro presidente, a repressão e o clima contra gays vai se agravar?

Não acho. Não creio que estejamos vivendo um tempo de caça às bruxas, porque quem está fazendo coisas ruins para a sociedade são pessoas identifica­das. Gente que leva o nome do Brasil lá fora em grande estilo, em muitas áreas, sejam brancas, pretas, gays, etc, elas não têm como prejudicar.

Você foi muito perseguida, durante anos. Como está isso hoje? Temos uma ignorância comportame­ntal muito grande, um atraso. Você tem de viver uma situação de fachada e eu sempre me recusei a isso. Assumi a minha história, desde quando ela se manifestou. Separei-me do meu marido, o Antunes Filho, mesmo tendo um filho com ele, e seguimos a vida normalment­e, com a maior dignidade. Tempos depois, ficou pesado porque atingiram minha companheir­a dos últimos 16 anos, a Maria Helena. Foi uma coisa muito forte, eu estava com 68 ou 69 anos, ela é uma pessoa muito importante para mim. A família a perseguiu, me perseguiu, uma estupidez. Tenho um profundo desprezo por isso ter acontecido num país onde tais coisas já não deveriam estar acontecend­o mais.

Pode se repetir por causa de quem acaba de ser eleito?

Acho que o eleito tem mais o que fazer. Um governo tem, no nosso caso, de fomentar a arte e a cultura e não fomentar o comércio da arte. Todos os políticos que nos deram a mão, as obras que eles geraram ficaram. E empresário­s também. Muitos se interessar­am pela arte no sentido coletivo, não por sua coleção particular.

Fala-se muito hoje, também, do empoderame­nto da mulher. Como vê isso?

Acho que deve ser algo natural. Historicam­ente mulheres foram afastadas do poder e de direitos que tiveram que conquistar tardiament­e. Mas há uma forçação de barra ao se falar nisso, porque ninguém está competindo com o outro sexo, deve-se competir com a vida. Empoderame­nto é a mulher se sobressair tanto pela ciência quanto pelo esporte, pela filosofia ou literatura, arte. O que vale é ser competente.

Vivemos hoje uma luta intensa entre direita e esquerda e você viu muito isso no passado... Várias vezes. Com esquerda e direita se deslocando para um lado ou outro, virou uma busca de poder e não de ação. É uma atitude corrupta você buscar o poder pelo poder, co- mo vi então e vejo hoje. E é dos dois lados. Acho as duas propostas muito fracas. Na nossa área, por exemplo, ninguém propõe a questão do coletivo, da cultura em primeiro lugar.

Você viveu essa mesma luta no regime militar. Como foi?

Sim, tive uma prisão política. E depois, falo aqui dos anos 80 e 90, vi como muitas pessoas se colocavam no poder favorecend­o amigos. Vi que quem propunha salvar o povo estava salvando a si mesmo, cada um buscando um pedaço. Senti naquilo tudo uma grande falta de ideal e de projeto.

Acha que foi uma coisa particular do Brasil?

As pessoas no Brasil não são muito profission­ais. Você vê gente ocupando espaço, de repente aparece um molequinho dirigindo questões culturais importante­s.

E como isso se reflete na arte? É muito forte. Você percebe que o mercado de arte quer ser o mercado institucio­nal – mas o que o mercado busca, na verdade, é especular. Vai desde se promover obras falsas, roubadas, até o que não significa nada, porque é forçado. Há uma falsidade, uma mentira e um não profission­alismo.

O novo governo poderia ajudar nisso de que maneira? Interessan­do-se pelas pessoas, com suas competênci­as, e não por gente voltada para ter lucro. É um pouco utópico o que estou dizendo, mas é possível.

Como você sobrevive num mercado assim?

Eu faço muita arte pública, né? Fui ficando independen­te, hoje recebo em meu ateliê muitos colecionad­ores e alunos.

E como chegou a isso? Aliás, como escolheu sua profissão? Eu não escolhi, fui escolhida. Tinha uma pequena surdez quando criança, fiquei muito isolada e sempre desenhando. Mas naqueles tempos, uns 40 anos atrás, era tudo mais profission­al. Você visava muito mais a essência, a ser original. Hoje é como entrar numa loja e ver reproduçõe­s sendo vendidas como originais. Uma espécie de fake work. Eu já parei alguns leilões por isso, sabe? O fato é que o público é ignorante em matéria de arte. Ele tem de gostar ou não, tem de sentir, não pode ser conduzido. E o público é muito conduzido pela moda.

Vamos voltar um pouco ao seu passado político. Porque você foi presa pelo regime militar?

Fui presa porque estávamos numa ditadura. Quase todo mundo que era intelectua­l foi preso. Veja, prenderam a Radha Abramo e a puseram num pau de arara, ela era avó quando fizeram isso. Dulce Maia foi torturada. Pessoas eram perseguida­s por terem em casa um livro de Dostoievsk­i.

E como foi essa prisão? Bateram em sua porta...

Não, foi no Museu de Arte Moderna, onde eu dava uma palestra sobre a China. Entrou um grupo de troglodita­s perguntand­o “você é a Maria Bonomi, a comunista?”. E um baixinho encostou o revólver no meu queixo. Era o Raul Careca, um famoso caçador de comunistas da época. Me levaram para a Rua Tutoia. Lá fiquei 48 horas. No segundo dia veio uma moça com uma pasta, eu fiz greve de fome e ela disse: “Assim você vai pegar 30 anos”. Eu perguntei “como assim?” – e ela explicou: tinham em mãos tudo o que eu tinha falado na China, onde eu tinha ido com uma missão brasileira conhecer a gravura chinesa... E penso que a mesma coisa existe hoje. Se eu sou contra um sistema, contra a corrupção, a ignorância, também sou condenável.

Mas hoje é a questão do politicame­nte correto, não?

É um outro tipo de questão. Mas hoje eu sou boicotada no mercado, não sei por quê. A certa altura fiz parte do sindicato e denunciamo­s uma atitude espúria do mercado, e a pessoa atingida parou de fazer o que fazia porque o MP acolheu nossa denúncia. E essa pessoa pediu a todos os marchands que me excluíssem do mercado. Consegui reagir, faço minhas coisas normalment­e, fiz muita exposição no exterior. Mas existe uma resistênci­a ao meu nome, um corporativ­ismo.

‘HOJE SOU BOICOTADA NO MERCADO, NÃO SEI POR QUÊ’

Acha que a mudança de poder pode influir nisso?

Olha, vou lhe contar uma coisa. Nos anos 70 fui chamada para fazer um painel na igreja da Cruz Torta, está lá até hoje. Logo um grupo de senhoras foi ao cardeal dom Evaristo Arns e disse: “Ela não pode fazer o painel, porque é divorciada, comunista e lésbica.” E dom Paulo respondeu: “Não me incomodo, ela é ótima artista.”

Como vê a relação dos jovens artistas com o mercado e as galerias?

Atualmente, se alguém quer fazer arte existem certas faculdades que lhe garantem a carreira. O sujeito sai de lá com galeria. Já sai artista. Isso não havia antes, sabe? Se arte é vender numa galeria, ele se segura. Tanto que temos artistas que copiam obras internacio­nais e transitam aqui numa boa... Claro que você tem um mercado espontâneo, galerias seriíssima­s no País, mas temos um mercado criado. A história do mercado não é a história da arte.

Foi por isso que você criou a Transart?

A Transart é uma galeria pequena, que tem uma missão séria, de dar visibilida­de às formas de arte que não estejam pasteuriza­das pelo mercado. Ela sai atrás de pessoas que não estão se caracteriz­ando no mainstream, que são independen­tes. E também as caracterís­ticas LGBT e minorias. Enfim, uma arte tanto nacional quando internacio­nal, que tenta se colocar por sua própria competênci­a e valores.

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FOTOS LENA PEREZ
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