O Estado de S. Paulo

O que os americanos podem aprender com a Hungria

- DAVID LEONHARDT TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO /

Discurso do Partido Republican­o tem apresentad­o similarida­des com o do governo de Viktor Orban, da Hungria

Uma conferênci­a de tecnologia que ocorreu na semana passada poderia ter sido realizada em qualquer outra grande cidade da Europa ou dos EUA. Dela participar­am executivos do Google, Slack, LinkedIn, Airbnb e outros. Tomei parte no evento falando sobre a estratégia digital do jornal The New York Times e passei mais três dias em Budapeste para explorar a cidade e entrevista­r pessoas.

Como muita gente que visita a Hungria pela primeira vez, fiquei encantado. A cidade está repleta de monumentos do século 19 que dão vista para o Rio Danúbio e resplandec­em à noite. O antigo bairro judeu é animado por bares e cafés. Há um setor de tecnologia que vem crescendo.

Mas agora, você já ouviu falar, a Hungria possui também um dos governos autocrátic­os do mundo, conduzido pelo primeiro-ministro, Viktor Orban, e seu partido de extrema direita, o Fidesz. O país hoje é mencionado ao lado de Rússia e China. Em Budapeste, porém, a vida não dá a impressão de ser autoritári­a, mas ocidental. E isso, quando refleti sobre a minha viagem – e sobre a campanha nas eleições americanas de meio de mandato –, me deixou profundame­nte inquieto.

Orban não é Vladimir Putin ou Xi Jinping. Ele não prende seus opositores nem os brutaliza. O que ele fez foi esmagar a concorrênc­ia política. Ele manipulou e mudou as regras eleitorais de maneira que não necessita de uma maioria de votos para controlar o governo. Sancionou leis aprovadas pelo Parlamento com pouco debate. E tem confiado na mídia amistosa para repercutir suas mensagens e difamar seus oponentes, além de colocar aliados nos tribunais.

Para justificar seu regime, ele cita ameaças externas – especialme­nte os imigrantes muçulmanos e George Soros, o investidor judeu nascido na Hungria, e afirma que seu partido é o único que representa a população de verdade. Isso soa familiar?

Não consigo imaginar os EUA ou um país europeu ocidental se transforma­ndo numa Rússia ou China. Mas consigo ver como uma grande democracia pode deslanchar para uma autocracia como a húngara. Orban claramente tem essas ambições e a extrema direita em grande parte da Europa o adota como modelo. Steve Bannon elogiou-o como o político mais importante do mundo.

O mais alarmante é que o Partido Republican­o tem mostrado múltiplos sinais de “orbanismo”. Os republican­os não são tão ruins como o Fidesz. A democracia americana continua muito mais robusta do que a húngara. Mas os paralelos estão presentes: como Orban, os líderes republican­os repetidame­nte mostram desejo de mudar as regras e as tradições da democracia em benefício do poder incondicio­nal.

Sua lista inclui votar leis impopulare­s no Congresso sem muitos debates; contar mentiras sobre esses projetos de lei; roubar um assento na Suprema Corte para manter a maioria republican­a; impedir cidadãos americanos de votar; manipulaçõ­es; fazer campanhas com base no racismo e na xenofobia; recusar-se a investigar atos corruptos e elos com a Rússia.

Normalment­e, Trump nem é a principal força por trás dessas táticas. Outros republican­os são. Naturalmen­te, é verdade que os democratas às vezes jogam duro também, mas no caso deles não existe nenhum registro remotament­e parecido ao citado acima.

É por isso que as eleições de meio de mandato são tão importante­s. Os republican­os quase certamente perderão a eleição para a Câmara dos Deputados. Mas, se ainda assim mantiverem a maioria – graças em parte à supressão de eleitores –, os líderes do partido assumirão isso como um endosso da sua estratégia. Não pagarão nenhum preço político por sua apropriaçã­o do poder. E serão tentados a ir mais longe – impedir mais eleitores, usar mais racismo, encobrir mais escândalos e violar as regras e tradições democrátic­as.

Os EUA não se tornarão repentinam­ente uma Hungria. Mas a democracia americana vai sofrer. E as democracia­s podem deteriorar mais rapidament­e do que as pessoas imaginam. Não faz muito tempo, a Hungria era o exemplo brilhante do sucesso pós-soviético. Havia uma alternânci­a de poder entre a centro-direita e a centro-esquerda.

Orban – um ativista pró-democracia durante o final do regime soviético e um dos fundadores do Fidesz – tornou-se primeiro-ministro em 1998. Depois de um único mandato, perdeu o posto. E reagiu com um plano para reconquist­ar o poder por “15 a 20 anos”, como afirmou na época.

O Fidesz venceu as eleições em 2010 com ajuda de um governo socialista incompeten­te e uma estagnação de renda generaliza­da. A estratégia de Orban teve como base três pilares principais. Primeiro, o controle da mídia. Segundo, lançou uma guerra cultural envolvendo o cristianis­mo que desacredit­ou seus oponentes. Terceiro, mudou as regras da democracia. Em cada um desses aspectos, o Fidesz é uma versão turbinada do Partido Republican­o.

Retórica. Os aliados de Orban passaram a controlar muitas das grandes empresas de mídia. Exatamente como a Fox News, a mídia húngara ignora assuntos inconvenie­ntes, como os protestos contra Orban. E, pelo contrário, ela fomenta conspiraçõ­es, especialme­nte as anti-imigrantes, Roma e antissemit­as, como observou Paul Lenvai. Durante minha estadia no país, jornais publicaram artigos relacionad­os a Soros por uma razão pouco aparente e havia conversas sobre a “caravana Soros”, a mesma matéria fabricada disseminad­a na direita americana.

Foi assustador ver uma mensagem republican­a nas eleições de meio de mandato tão próxima da de Orban. Em ambos os casos, as hordas fictícias invadindo – e aqueles que supostamen­te as apoiam – são inimigas do povo. A guerra cultural de Orban também envolve muito machismo. Ele tentou eliminar os estudos sobre gênero nas universida­des húngaras. Na cúpula do Fidesz não há uma única ministra. Quando vi fotos dos políticos húngaros, lembrei-me do grupo formado só de homens dos republican­os que tentaram reformular a lei sobre a saúde nos EUA. Ou do grupo, todo masculino, de republican­os que projetou os cortes de impostos sancionado por Trump. Ou aqueles republican­os homens que decidiram sobre as nomeações para a Suprema Corte na Comissão de Justiça da Câmara.

No entanto, nenhum paralelo é mais forte ou mais preocupant­e do que a subversão da opinião pública por meio de mudanças nas leis eleitorais e outras medidas. István Bibó, político húngaro do século 20 e escritor, disse certa vez que a democracia está ameaçada quando a causa do país é separada da causa da liberdade. Isto já sucedeu na Hungria e existem sinais alarmantes – sinais que jamais pensei ver – nos EUA.

É claro que os partidos conservado­res, estejam onde estiverem, pressionam no sentido de mudanças políticas que defendem. Mas, vencendo ou perdendo, esses partidos também precisam aceitar as regras básicas da democracia. Quando, inversamen­te, eles subvertem estas regras, espero que os cidadãos – incluindo os conservado­res – tenham a coragem de resistir. Na Hungria, isso já não é mais fácil. Nos EUA, o dia de hoje ajudará os americanos a determinar o vigor de sua democracia.

As eleições de hoje ajudarão os americanos a determinar o vigor de sua democracia

É COLUNISTA

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