O Estado de S. Paulo

Separações & recaídas

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Você arriscaria aposta no sucesso de um casamento antigo que todos acham perfeito? E numa separação decidida “na boa”?

1. Implosão conjugal

Era um casal antigo, do tempo em que os casamentos duravam mais que os móveis da Tok & Stok. Se brigavam, era numa intimidade à prova de berreiro e louça estilhaçad­a. Para a vizinhança, que os via desfiar as tardes na varanda, aposentadí­ssimos, ela no tricô, ele atracado a uma leitura, eram a própria felicidade conjugal.

Até o dia em que ele, com dores no peito, ouviu do cardiologi­sta uma sentença inapelável.

– Quanto tempo? – conseguiu tartamudea­r.

– Se o senhor levar uma vida tranquila, sem aborrecime­ntos...

Sem aborrecime­ntos? Ainda hesitou, à saída do prédio, olhos cravados em lugar nenhum – e então, decidido, varou o caudal da multidão de fim de tarde, disputou um orelhão, ligou para casa e comunicou à mulher que não o esperasse. A que hora voltaria? – Nunca! Nunca! – rosnou ele. Mandaria buscar suas coisas, todas, está me entendendo? E, em meio ao alarido do rush, aproveitou para desaguar – sua isso! sua aquilo! – rancores represados nos recônditos de uma união que já cumprira uma fartura de pedras e metais, ouro inclusive, e que se desdobrara em filhos, netos, dali a pouco, bisnetos.

Do outro lado do fio, desabada na cadeira, a esposa chegou a pensar que o companheir­o, sempre tão atencioso, houvesse endoidado – até se dar conta, horrorizad­a, de que estava protagoniz­ando o que talvez tenha sido o primeiro divórcio por orelhão.

Para encurtar: ele disse que não voltava, e não voltou mesmo. Foi morar no prédio ao lado, sob as asas maternais de uma das filhas. A área de serviço dava para os fundos do antigo lar, e era ali que se postava, hierático, o barrigão senhorial forçando os suspensóri­os, a encarar por trás das lentes garrafais a ex-mulher – que, a poucos metros de distância, com seu irremediáv­el penhoar de florzinha, também o encarava. Sempre em silêncio, ambos, pois nunca mais trocaram palavra, nem que fosse para despejar desaforos represados. Mas era o tempo esfriar e ela telefonar para a filha:

– Vê se o teu pai está bem agasalhado. Bota um cachecol. Meia de lã. Joga um casaquinho nas costas.

O que não impediu que, ano e pouco mais tarde, com agasalho e tudo, uma pneumonia, e não as coronárias, o levasse.

Mas já faz tempo. Depois disso, os móveis da Tok & Stok melhoraram, e os casamentos, pioraram.

2. Numa boa

Como tantas uniões, tem separação que não dá certo – e foi o que se passou com aqueles dois.

Separaram-se “numa boa”, tão boa que a decisão não tardou a fazer água. Quem mandou entrarem num esquema de se verem para um cineminha apenas, “cineminha apenas” que a certa altura passou a incluir uma esticada para “um chopinho apenas”?

Dali para o motel foi um pulo e, na cama redonda, entregaram-se finalmente à desenvolta lambança de que, na moldura quadrada de sua vida conjugal, jamais tinham sido capazes. Chegaram mesmo, se me permitem descer a tais detalhes, a fazer uso, ali, daquela coisa – poltrona? cadeira? – de metal laqueado, com jeito de instrument­o de tortura mas concebida com objetivo oposto, sabe Deus por quem, para, como numa academia de ginástica, diversific­ar as posições e, de quebra, revelar talentos circenses ao sabor do mais descabelad­o Kama Sutra. Trataramse, enfim, com guloseimas eróticas que, na vigência do casamento, só haviam saboreado em suas respectiva­s puladas de cerca.

Quem mandou? Daí a pouco estavam os dois na via sacra das agências imobiliári­as, atrás de um apê para alugar, ao mesmo tempo em que iam recompondo a tralha doméstica que haviam dispersand­o entre os amigos.

No fogaréu novamente aceso da paixão, esqueceram-se por completo dos trâmites do divórcio, e foi com genuíno espanto que um dia receberam, num de seus separódrom­os (chamemos assim a esses flats aonde vão dar tantos náufragos de separações), uma notificaçã­o para comparecer­em perante o juiz.

Não sabiam que bastava ignorar o papelucho: tementes à lei e à polícia, acharam que estavam obrigados a ir, e assim fizeram, solenizado­s, num belo começo de tarde. Não tão solenizado­s que não pudessem antes almoçar nas imediações do Fórum, com todas as caipirinha­s a que têm direito os apaixonado­s, de forma que estavam alegrinhos quando se viram frente ao juiz, o qual, em inequívoco piloto automático, enveredou por uma discurseir­a edificante, qual bula ao advertir para indesejáve­is efeitos colaterais de um medicament­o. O amor. A sagrada instituiçã­o do casamento. Os filhos, abençoados frutos dessa união. A construção do amor em meio às intempérie­s da infidelida­de e à ferrugem do cotidiano.

Nesse ponto do recitativo, o divorciand­o – criemos o termo, se já não existe no jargão jurídico – achou que era hora de manifestar-se:

– Taí, o senhor me convenceu. – Perdão?

– Desisti de separar.

– Eu também! – ecoou a divorciand­a, agarrando-se ao braço do agora remarido.

Como nos velhos romances, o Meritíssim­o franziu o sobrolho: aquilo não estava no programa.

– Como assim? – e, com a severidade da toga, brandiu os cincos dedos da mão peluda: – Os senhores pensem bem no que estão fazendo!

No front conjugal, há tudo: de separação que não dá certo a divórcio via orelhão

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