O Estado de S. Paulo

Lendas e contrastes

- Bruna Toni / ILHA GRANDE DE CHILOÉ

Há milhares de anos, duas serpentes travaram um duro confronto no Pacífico Sul, na costa de um território que viria a ser o Chile. Caicavilú, serpente da água, desejosa por incorporar a seus domínios marinhos aquele trecho de terra, o inundou. Por sua vez, Tentenvilú, serpente da terra e da fecundidad­e, tentou proteger o território, ajudando seus habitantes a escalar montanhas para escapar das inundações ou atribuindo-lhes dotes de aves e peixes para que não se afogassem. Enquanto Caicavilú subia o nível do mar, Tentenvilú fazia crescer as montanhas. Enfim, a serpente terrestre triunfou, dando origem a um arquipélag­o de cerca de 40 ilhas: Chiloé.

“Lugar de pássaros” na língua mapuche, Chiloé não é um destino tão conhecido dos brasileiro­s, apesar de estar a apenas 1h30 de voo da capital Santiago. É, no entanto, o maior arquipélag­o chileno, onde está a quinta maior ilha da América do Sul: a Ilha Grande de Chiloé. Sua riqueza, porém, não está em seu tamanho, mas em sua autenticid­ade. Os anos se passaram ali sem que a essência do povo chilote, entre o passado indígena e a presença dos espanhóis, se perdesse completame­nte: seus campos que sobem montanhas e suas as águas gélidas continuam sendo a base do sustento e da beleza natural; e suas narrativas mitológica­s ainda fazem parte do cotidiano e de suas visões de mundo.

Cores. Os ares bucólicos estão na arquitetur­a e nos vastos campos cobertos de uma planta amarelo-gema que está por toda parte. “É o espinillo. É bonita, mas nós, chilotes, não gostamos muito dela”, me diz rindo Javier Mozó, guia turístico do hotel Tierra Chiloé, onde me hospedei (mais informaçõe­s no texto abaixo). “Ela cresce que nem praga e é difícil de arrancar depois, dificulta o plantio.”

Entendo Javier. Mas, seguindo critérios estéticos, ela fica linda diante do colorido das casas de madeira, erguidas sobre blocos de concreto ou palafitas. As construçõe­s mais antigas, de madeira tejuela, mostram as marcas do tempo no marrom escuro uniforme; as mais novas, de madeira vertical lisa, costumam ser pintadas e mais descoladas. Às vezes estão isoladas; noutras, compõem uma avenida mais agitada onde também há comércio. Pergunto a Javier se não há nada de tijolo e concreto. “Há algumas construçõe­s em Castro”, diz ele, se referindo à capital do arquipélag­o, onde vive a maior parte de seus 140 mil habitantes e onde está o aeroporto com voos de e para Santiago.

A madeira é também o material de suas famosas igrejas, construída­s a partir do século 17 com a chegada das missões jesuíticas. São dezenas, das quais 16 se tornaram Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Ali, a evangeliza­ção ocorreu sem a presença constante de figuras do clero: os franciscan­os chegavam, ensinavam preceitos e partiam, deixando a cargo de um leigo a tarefa de pregar a palavra católica na comunidade. Esse leigo, chamado fiscal, existe até hoje e é ele o responsáve­l pelos ritos religiosos.

E se não há padre, também não há padrão europeu nas igrejas: para erguê-las, os chilotes se inspiraram nas construçõe­s de seus barcos, com algumas referência­s espanholas. Assim, as igrejas têm apenas uma torre central, por exemplo.

Cheguei a Chiloé numa terça chuvosa e logo aprendi que, por lá, as chuvas fazem parte da rotina. “Aqui, quando não está chovendo é porque vai começar a chover”, me disse uma funcionári­a do hotel. Mas não se preocupe: se a chuva vem em questão de minutos, ela também desaparece rapidament­e. De outubro a março é alta temporada: as máximas podem chegar a 20 graus e o frio diminui – eu peguei 8 graus, mas as mínimas chegam a 2 graus negativos ao longo do ano. É nesse período que chegam aos pantanais da região as aves migratória­s, entre elas o zarapito de bico reto, vindo do Alasca, e os pinguins de Magalhães e Humboldt – para vê-los, programe sua viagem a partir de novembro.

Todo esse ar bucólico é perfeito para o combo conexão com a natureza (e desconexão com a internet), vinhos e mariscos frescos à mesa e roupas de lã quentinhas, algo que faz parte da confecção e do artesanato local. Ideal para sossegar, tanto para mochileiro­s (há hospedagen­s simples nas aldeias maiores), quanto para adeptos do luxo rústico. Irresistív­el para quem quer descobrir a beleza que o duelo das serpentes acabou por conferir a esse pedaço do Pacífico. A JORNALISTA VIAJOU A CONVITE DO HOTEL TIERRA CHILOÉ

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BETO BARATA/ESTADÃO Panorama. Vista de Quinchao, aonde só se chega de balsa; ali está a mais antiga das igrejas chilotas, de 1740
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