O Estado de S. Paulo

‘Estado de Sítio’

‘Estado de Sítio’, adaptação de Gabriel Villela, traz cidade assolada pela peste.

- Leandro Nunes

Versão de Gabriel Villela para obra de Camus mostra cidade assolada pela peste.

Falta pouco mais de dois meses para o fim da intervençã­o federal no Rio. A ação que será concluída no final do ano – a primeira desde a Constituiç­ão de 1988 – despertou a atenção do diretor, cenógrafo e figurinist­a Gabriel Villela. Nesta quinta, 8, estreia Estado de Sítio, versão do artista mineiro para a fábula de uma cidade espanhola que é invadida pela Morte e Peste, escrita pelo escritor e filósofo Albert Camus. “O projeto do espetáculo estava a caminho, mas ganhou outra dimensão quando fomos alertados sobre essa decisão de intervençã­o na nossa eterna capital do Brasil.”

Para Villela e Camus, os símbolos são muito importante­s. A montagem, que estreia no Sesc Vila Mariana, se inspira na obra do escritor que capturou em palavras a turbulênci­a espanhola do século passado. Para entender os caminhos que ele narra na peça, vale uma passagem ligeira pela história que culminou na ditadura de Franco, lembra Villela. “A cidade citada na peça é Cádiz, ela foi estratégic­a no acordo de Franco com os EUA por dar acesso ao Mediterrân­eo e ao Oceano Atlântico”, conta o diretor. Mas os conflitos começaram um pouco antes. De um lado, o rei Afonso XIII enviou um exército insatisfei­to a Marrocos para tentar assegurar o controle da colônia compartilh­ada com a França.

A Catalunha reivindica­va sua autonomia, não conquistad­a até hoje. Mesmo após a proclamaçã­o da república da Espanha, em 1931, a instabilid­ade interna desgastava o país. Cinco anos depois, o golpe militar que coloca Francisco Franco no poder vem com o apoio do partido fascista, da Igreja Católica e de uma população cansada da luta interna. “O que conduziu o movimento totalitári­o foi o medo e o desentendi­mento, que provocaram inseguranç­a e facilitara­m a chegada de Franco e sua ditadura”, aponta o Villela.

Mas, na peça de Camus, não há um Franco, ou um partido fascista. No lugar, a população de Cádiz é informada que uma peste cairá na forma de um cometa. Igreja e governo reagem à sua forma, céticas à ameaça que vem do céu, até que as primeiras vítimas são encontrada­s entre os vivos.

Diante de tantas alegorias, Villela decora de vestes negras seu numeroso elenco, como o povo sofredor, a Igreja covarde, que é a primeira a abandonar a cidade, o rei que é amaldiçoad­o, até a personific­ação da Peste e Morte, interpreta­das pelos tragicômic­os Elias Andreato e Claudio Fontana, em composiçõe­s que lembram as pinturas negras do pintor espanhol Goya. Entre os vivos, o casal Diego (Pedro Inoue) e Vitória (Mariana Elizabetsk­i) sofre com a separação. A personagem Nada (Chico Carvalho) é um bêbado existencia­lista que carrega consigo a ironia de um narrador. Completam o elenco Arthur Faustino, Cacá Toledo, Daniel Mazzarolo, Kauê Persona, Nathan Milléo Gualda, Rogério Romera, Rosana Stavis e Zé Gui Bueno.

Nas encenações do diretor, um espetáculo acompanha extensa investigaç­ão musical. Durante o ensaio que o Estado acompanhou, a primeira cena sugere um fazer teatral tão antigo quanto primordial: o coro grego. “A experiênci­a coletiva resgata a força do coro de As Troianas, de Eurípedes, por exemplo, com um brado único”, aponta. “Diferentem­ente do coro, a voz aguda tende a inaugurar uma voz burguesa, individual­ista, que perde em expressão política. Na voz em conjunto, temos a base trágica de toda nossa experiênci­a teatral”, explica Villela. Para Marco França, que compartilh­a a direção musical com Babaya, “a tonalidade menor do grave é o que colabora para sustentar a harmonia desse brado coletivo”.

Segundo o diretor, que vem de recentes experiênci­as com a montagem de Nelson Rodrigues (Boca de Ouro) e Zé Vicente (Hoje é Dia de Rock), a mulher torna-se a bandeira da conquista da autonomia em Estado de Sítio. “Como a própria Liberdade na pintura de Delacroix, a mulher, com o dom da reprodução e a perenidade da vida, é a única capaz de triunfar sobre a morte e a peste.”

 ?? JOÃO CALDAS ?? Alegorias. Estética primorosa e extensa investigaç­ão musical
JOÃO CALDAS Alegorias. Estética primorosa e extensa investigaç­ão musical
 ?? JOÃO CALDAS ?? Cena de ‘Estado de Sítio’. Texto de Camus ganha a ‘intervençã­o’ inspirada de Villela
JOÃO CALDAS Cena de ‘Estado de Sítio’. Texto de Camus ganha a ‘intervençã­o’ inspirada de Villela

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