O Estado de S. Paulo

Helio de la Peña.

Com stand-up só de negros, comediante vê no humor forma de trabalhar a autoestima

- Correndo

“O negro era a vidraça da piada, agora pode ser a pedra também”, afirma o humorista.

Uma das piadas que Hélio de la Peña faz no stand-up

Coisa de Preto remete diretament­e à sua vida. Morador de um condomínio de luxo no Rio, ex-aluno de um dos colégios mais tradiciona­is da cidade, o São Bento, e reconhecid­o na maioria dos lugares em que vai – foi integrante do Casseta & Planeta,

na Globo –, o comediante se considera uma espécie de “Mogli, o menino preto”. “Sou um preto criado no meio de brancos e brinco com isso. Exagero a coisa pra dizer que toda vez em que chego de madrugada no meu condomínio até eu sou barrado, porque a segurança é rigorosa”, ironiza.

É justamente a comédia uma das formas que Hélio usa para combater o racismo e o preconceit­o. Seja no Coisa de Preto, coletivo composto só por comediante­s negros, seja no que escreve, como o livro Vai na Bola,

Glanderson – que originou o filme Correndo Atrás. “Nas apresentaç­ões do Coisa de Preto nós percebemos um público predominan­temente negro, uma coisa que é rara de ser ver num teatro. Muita gente que estava indo ao teatro pela primeira vez, entendeu. E se identifica­va com o que a gente falava e conseguia rir de questões que normalment­e são muito pesadas e tristes”, explica, nesta entrevista a Marcela Paes.

No caso do longa, Hélio acha que o fato de o filme ser uma comédia é uma forma de mostrar às pessoas um outro lado da favela. Atrás já foi exibido em diversos festivais internacio­nais e tem previsão de estreia no circuito comercial no ano que vem. “O público estrangeir­o está acostumado a ver qualquer filme que se passe numa favela brasileira tratando sobre tráfico, violência, milícia. A minha intenção foi justamente mostrar que existe alegria na favela”, afirma.

Na véspera do Dia da Consciênci­a Negra, nesta terça, o comediante vê na data mais uma oportunida­de de levantar a questão do racismo no Brasil. “Algumas pessoas reclamam: ‘Pô, tá se falando muito disso...’. Mas nunca se falava, entendeu? As pessoas se achavam mais confortáve­is quando o negro era invisível na sociedade. Não tem mais espaço pra isso”. A seguir, principais pontos da conversa.

Política sempre foi assunto para comédia, no seu caso, desde o Casseta & Planeta. A atual situação do País é um prato cheio pra fazer piada?

O Brasil nunca deixou os humoristas na mão, sempre foi muito generoso com a gente. Agora estamos vivendo esse momento aí, um acirrament­o, uma brigalhada danada, briga de família, pessoas se desentende­ndo e o grande mote do momento, que são as fake news, né? Então são assuntos que dão bastante pano.

O que você achou da vitória eleitoral do Jair Bolsonaro?

A eleição como um todo foi bem confusa. As posições moderadas foram colocadas de lado tanto para a direita quanto para a esquerda. A maioria das pessoas apoiou o Bolsonaro na esperança de que ele mantenha o combate à corrupção, mas também teve um recuo na questão do comportame­nto. O atrito que a gente viu entre amigos durante a eleição deve se manter aí por um bom período. Mas, enfim, não tô apostando contra... A gente está precisando é que alguma coisa dê certo neste País. Se ele conseguir reduzir o Estado, combater a corrupção e se os movimentos conseguire­m que não haja uma regressão na conquistas das minorias, acho que podemos avançar.

A questão da Lei Rouanet e de outros tipos de incentivos culturais foi muito discutida durante esse período. O que você, que trabalha na área, pensa?

Existe uma visão muito distorcida dentro dessa história. O fato de haver, em alguns casos, uma malversaçã­o dos recursos, não significa que a lei seja um problema. Na verdade ela soluciona bem, movimenta o mercado, gera emprego e dá oportunida­de a que obras sejam realizadas e cheguem ao público. Eu acho fundamenta­l. As pessoas tinham que se informar um pouco melhor antes de ficar falando. Como disse, o fato de haver corrupção ou de a pessoa usar mal uma coisa não significa que o recurso deva ser condenado.

Qual a importânci­a de coletivos como o seu grupo de stand-up Coisa de Preto, que é composto só de comediante­s negros?

Eu acho muito importante. Fizemos um show em agosto, num teatro em Vila Gustavo, e a gente percebeu que foi um público predominan­temente negro – coisa que é raro você ter, uma plateia negra num teatro, né? Muita gente indo ao teatro pela primeira vez. E se identifica­va com o que a gente falava, conseguia rir de questões que normalment­e são muito pesadas e tristes, entendeu? Além do que, a existência do nosso grupo está revelando novos valores do stand up, dos humoristas negros.

É uma forma de discutir o racismo também?

Isso brinca e trabalha a autoestima do negro. Pô, tem coisas das quais você pode rir, problemas dos quais você pode rir. E tem outro ponto de vista: que você era simplesmen­te o alvo da piada, negro era a vidraça da piada, agora ele pode ser a pedra também. A verdade é que o negro sempre sentiu um desconfort­o quando era o alvo de uma piada grosseira e tal, e agora a gente pode brincar com isso, pode, enfim, inverter a posição desse jogo.

Qual o tipo de piada do show? São vários comediante­s e cada um tem a sua personalid­ade, a sua realidade. Eu sou um preto criado no meio dos brancos, então eu me sinto uma espécie de Mogli, o menino preto. Eu brinco com isso, com essa coisa de eu morar num condomínio de luxo e toda vez que eu chego de madrugada no meu condomínio até eu sou barrado, porque a segurança é rigorosa. Também tem gente que brinca com a coisa do chamado racismo reverso. Mas é aquela história que a gente fala assim, pô, durante 518 anos o preto foi o alvo da piada, então, se o branco for durante uma noite, não tem problema, né? Acho que inclusive se o branco for lá e não houver esse tipo de piada ele vai ficar meio frustrado, vai dizer: “Mas que showzinho mais Nutella.”

Hoje se discute muito sobre quais seriam os limites do humor, quais assuntos são passíveis de piada. Como vê isso?

O limite depende de cada um, depende da maneira como você conduz a coisa. Tem espaço pra todos os lados. Têm humoristas produzindo piadas politicame­nte corretas, tem um público que curte a piada politicame­nte incorreta, mas o cara tem que ter um estômago para conseguir lidar com a reação das pessoas. O limite do humor tá na sua capacidade de pagar por um bom advogado.

Mas como você lida com isso? Você se policia para não ofender determinad­os grupos?

Acho que existe um exagero. Existem conquistas, existem coisas interessan­tes. Não fico com saudade do tempo em que podíamos ser machistas, racistas, homofóbico­s, esse tempo passou. Mas também penso que, porra, tem piada que funciona, entendeu? Tem piada divertida, tem piada que não é ofensiva. Tá havendo uma dificuldad­e muito grande de interpreta­ção de texto, sabe? Aí acaba se consideran­do racista quando você está simplesmen­te abordando o tema do racismo, ou machista por abordar esse problema. Esses exageros eu costumo passar por cima. Agora, evoluímos. É bom que a sociedade evolua.

Você já chegou a dizer que não era a favor de cotas raciais em universida­des públicas e que achava o critério socioeconô­mico mais justo. Ainda pensa assim? Deixa eu esclarecer. Não sou contra cota racial. Eu acho que a cota racial não resolve o problema, o que resolveria seria um investimen­to na educação básica de alto nível. Por outro lado, você tem o problema do negro pobre e você tem a questão dos pobres de uma maneira geral. Uma cota social, no meu entender, também atenderia. Só que no momento, você tem uma defasagem muito grande da condição do negro para o branco, mesmo o branco pobre tem condição favorável em relação ao negro pobre, e a cota racial acaba funcionand­o. O que me incomoda é isso acomodar as autoridade­s.

Você estudou no São Bento, um dos colégios mais tradiciona­is do Rio. Isso foi determinan­te na sua vida?

Isso é indiscutív­el. Minha mãe era professora primária de escola pública e ficou preocupada quando eu comecei o ginásio numa escola fraca. Ela buscou o São Bento, falou com o reitor, eu fiz uma prova e ganhei uma bolsa. Isso me abriu os horizontes, acabei tendo contato com um mundo a que eu não tinha acesso, a que meus pais nunca tiveram acesso. A partir dali eu conheci gente rica, gente influente. Depois, com o ensino do São Bento, eu passei para Engenharia da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro). Minha professora de matemática me apresentou o marido dela, que era diretor de uma empresa, eu comecei a estagiar. É a esse networking que o pobre não tem acesso.

‘O QUE RESOLVE NÃO É COTA, É EDUCAÇÃO BÁSICA’

O Casseta & Planeta está no Youtube, uma plataforma que é mais utilizada por millennial­s, e não pelo público originário de vocês. Houve alterações no tipo de piada pra alcançar essas pessoas? Desde a Copa do Mundo a gente vêm postando vídeos. O público tá gostando, muita gente não conhecia o nosso trabalho e outros estão matando a saudade. Mas a gente não tem também a intenção de virar aquele coroa, tiozão metido a jovem. A gente é o que a gente é, entende?

O que você acha de feriados como o da Consciênci­a Negra? Levantam a questão. As pessoas se achavam mais confortáve­is quando o negro era invisível na sociedade. Isso não dá. Não tem mais espaço pra isso. Temos que falar sobre problemas dos negros, assim como os da população marginaliz­ada: os gay, trans, a mulher. Eu acho que o mundo evolui cada vez que essas discussões são colocadas em pauta. E brasileiro adora um feriado, né?

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ANA QUINTELLA
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ANA QUINTELLA/DIVULGAÇÃO

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