O Estado de S. Paulo

Noites de solidão convergind­o para uma lua de sangue

- CRÍTICA: Luiz Carlos Merten

Na mesma rodada de entrevista­s sobre Voz do Silêncio em que o repórter se encontrou com Marieta Severo (acima), também estavam o diretor André Ristum e o ator Arlindo Lopes. Ristum, de 36 anos – fará 37 em dezembro –, teve uma infância e adolescênc­ia que muitos considerar­ão privilegia­da. O pai, Jirges, era amigo de Glauber Rocha. O padrasto, Ivan Isola Negro, quando a família residia

Ana Itália – no exílio –, introduziu-o no círculo de Bernardo Bertolucci e André foi assistente em Beleza Roubada.

A Voz do Silêncio é um filme sobre a solidão urbana. O começo, até chegar ao primeiro personagem, é um poema sobre essa São Paulo gigantesca, desumana, mas que possui uma beleza particular. Como se filma a metrópole e aqueles que ela despreza? O filme pode ser uma boa resposta, como também é A Moça do Calendário, de Helena Ignez. Ristum diz que seu filme nasceu da observação. “No prédio em que morava anteriorme­nte havia esse velho solitário. Nunca o vi com ninguém. Foi talvez o primeiro personagem em quem pensei. Foram surgindo mais dois ou três. No meu imaginário, essas pessoas, embora fictícias, se tornaram reais. E aí o que eu tive de fazer foi misturar as histórias, para criar esse filme coral.”

Marieta Severo é uma estrelas, mas, em termos de permanênci­a em cena, sua personagem, Maria Cláudia, não é protagonis­ta. Sua história não catalisa as demais. Ela é uma peça da engrenagem que arma as diferentes tramas de A Voz do Silêncio. Maria Cláudia é evangélica, vive solitária. Tem esse filho que escorraçou de casa ao descobrir que era gay, e há outro segredo sobre o garoto que vai sendo desvendado ao longo do filme. Arlindo Lopes é quem faz o papel. Interpreto­u Chitãozinh­o num telefilme de Ristum, Nascemos para Cantar (sobre a dupla, o irmão Xororó e ele). Ristum escreveu o personagem de A Voz do Silencio para Arlindo. “Não é demais?”, pergunta o ator. A irmã é quem cuida da mãe, mas ela também tem problemas com a carreira. Quer ser cantora, mas na boate os clientes querem mais que ela tire a roupa.

São várias histórias – a corretora que não consegue vender nada, seu pai que tem um programa de rádio e está morrendo, o sushiman que quer prestar exame para cursar direito, etc. Além de escrever o filho para Arlindo Lopes, Ristum escreveu a filha para sua ex-mulher, Stephanie De Jongh. Há tempos queria trabalhar com Marat Descartes,

Cláudio Jaborandy. Os personagen­s foram se ajustando aos atores. Maria Cláudia, que seria o problema – pela complexida­de –, quando terminou ele achou que teria de ser Marieta Severo. Ela topou. Nicola Siri é presença permanente em seus filmes. E os argentinos vieram com a coprodução.

Todas essas histórias articulam-se em torno de um eclipse – o eclipse da sociedade humana? Michelange­lo Antonioni, 1962. A Lua torna-se vermelha, como a violência irrompe nas histórias. Tanta solidão poderia resultar, quem sabe, num filme deprê, mas há algo de Paraíso Perdido, o belo longa de Monique Gardenberg, nessas histórias cruzadas. Como construir a superação? Mesmo com risco de spoiler, aí vai. Toda a arquitetur­a dramática converge para o elaborado final, um plano-sequência que, sem resolver propriamen­te as histórias individuai­s, articula todos os personagen­s. Onde, como? Veja – Ristum ainda é jovem, mas a cena é de mestre.

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