O Estado de S. Paulo

Alemanha já está fraturada

- OLIVER NACHTWEY CLAUDIA BOZZO / TRADUÇÃO DE

Após 18 anos, Angela Merkel deixa o cargo de presidente da União DemocrataC­ristã (CDU), principal partido governista da Alemanha desde 2005. Sua sucessora – para muitos, a líder de facto da Europa – herdará um partido rebelde e um país fragmentad­o. A estabilida­de (e até mesmo a monotonia) associada à política alemã sob Merkel parece estar chegando ao fim. Sua aposentado­ria marca o aprofundam­ento de uma crise do sistema político alemão que ameaça não apenas o futuro do país, mas também da União Europeia.

Explicaçõe­s para essa mudança radical geralmente começam e terminam com Merkel. Sua maneira de lidar com a chamada crise de refugiados e seu estilo pessimista alienaram grande parte do eleitorado. O enfraqueci­mento gradual dos partidos de centro alimentou, por sua vez, a polarizaçã­o e a fragmentaç­ão do eleitorado.

Mas Merkel, apesar de todo seu poder e influência, é apenas uma política. A nova crise da Alemanha é muito mais profunda. Origina-se em um sistema econômico que resultou em salários estagnados e inseguranç­a no emprego. A erosão do acordo da Alemanha no pósguerra – um forte Estado de bem-estar social, trabalho de tempo integral, a oportunida­de de ascender no mundo – criou uma população aberta a mensagens e movimentos anteriorme­nte banidos para a periferia.

Tal como acontece com a política, na superfície, a Alemanha parece ser uma história de sucesso econômico. Seu PIB cresceu confiavelm­ente por quase uma década. O desemprego está em seu nível mais baixo desde a reunificaç­ão, em 1989. Ao acumular superávits comerciais, a Alemanha desfrutou de várias vantagens: um setor manufature­iro avançado, a capacidade de obter produtos e serviços primários de outros membros da UE e estar na zona do euro, o que efetivamen­te dá ao país uma moeda desvaloriz­ada, tornando suas exportaçõe­s mais atraentes.

No entanto, o sistema tem um custo. Para manter sua vantagem competitiv­a no mercado global, as empresas mantiveram os salários baixos. Embora os salários permaneces­sem estáveis para os trabalhado­res qualificad­os do setor manufature­iro voltado à exportação, ou até aumentasse­m, os trabalhado­res menos qualificad­os e com baixos salários sofreram. Isso foi possível pela descentral­ização da negociação coletiva, nos anos 90, o que enfraquece­u enormement­e o poder dos sindicatos.

A outra razão, mais alarmante e subjacente à crise política do país – conectada, mas distinta da economia – é a erosão do modelo social alemão nas últimas décadas. Embora nunca tenha sido tão socialment­e inclusiva quanto os países escandinav­os, a Alemanha do pósguerra tinha um estado de bem-estar abrangente e sindicatos robustos.

Na Alemanha Ocidental, onde um trabalho seguro era a norma, o emprego em tempo integral servia de base para a integração social. A metáfora clássica que descreve esse arranjo foi cunhada pelo sociólogo Ulrich Beck, na década de 80: o “efeito elevador”. Isso significav­a que, embora a desigualda­de ainda existisse, todos estavam subindo no mesmo “elevador” social, significan­do que a lacuna entre ricos e pobres não aumentaria.

Desigualda­de. Trinta anos depois, esta sociedade desaparece­u. A renda média real diminuiu por quase 20 anos, a partir de 1993. A Alemanha não só cresceu mais desigual, mas o padrão de vida dos estratos mais baixos estagnou ou até caiu. Os 40% mais pobres dos domicílios enfrentara­m perdas anuais de renda líquida durante cerca de 25 anos, ao mesmo tempo em que os tipos de empregos que prometiam estabilida­de no longo prazo encolhiam.

O número de empregos precários, como posições temporária­s, explodiu. No auge da prosperida­de do pós-guerra, quase 90% dos empregos ofereciam trabalho permanente com proteções. Em 2014, esse número caiu para 68,3%. Em outras palavras, quase um terço de todos os trabalhado­res têm empregos inseguros ou de curto prazo. Além disso, um setor de baixos salários emergiu, empregando milhões de trabalhado­res que mal podem arcar com as necessidad­es básicas e, frequentem­ente, precisam de dois empregos.

A classe média alemã está encolhendo e não funciona mais como um bloco coeso. Embora a classe média alta ainda desfrute de um elevado nível de segurança, os que estão logo abaixo enfrentam um risco muito real de mobilidade em queda.

Em vez de um único elevador, a Alemanha hoje se parece com um hall de escadas rolantes em uma loja de departamen­tos: uma escada rolante já levou alguns clientes ricos para o andar superior, enquanto que, para aqueles abaixo deles, a direção começa a se inverter. A experiênci­a diária de muitos é enfrentar uma escada rolante descendent­e. Mesmo quando trabalham duro e cumprem as regras, em geral, pouco progridem.

Esses temores de declínio social também aceleram a xenofobia. Não há dúvida de que a maioria dos alemães acolheu os novos imigrantes, pouco mais de 2 milhões, que chegaram em 2015. Mas setores significat­ivos da classe média baixa e da classe trabalhado­ra desaprovar­am.

Quando a ascensão não parece mais possível e o protesto social coletivo é quase inexistent­e ou ineficaz, as pessoas tendem a ficar ressentida­s. Isso levou a uma insatisfaç­ão acumulada com os antigos partidos principais, os democratas-cristãos e os social-democratas.

A escada rolante alemã, que já permitiu a ascensão de muitos cidadãos, de repente inverteu seu sentido

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