O Estado de S. Paulo

A volta do ‘Pasquim’

- TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Pouco antes das eleições, o presidente eleito revelou que um dos objetivos de seu governo seria fazer o Brasil semelhante ao de 50 anos atrás. Fiz as contas, deu 1969.

Vivíamos em 1969 sob uma ditadura militar, que o ex-capitão e seu vice general negam com a mesma convicção dos que contestam o Holocausto, o aqueciment­o global, a esfericida­de da Terra e a inexistênc­ia de Papai Noel.

Muita mais gente do que se imagina sente nostalgia por um tempo que não viveu. Tenho amigos que, a exemplo do protagonis­ta daquela comédia de Woody Allen, lamentam não terem vivido na Paris dos anos 1920, quando os pais de alguns deles ou ainda eram bebês ou nem haviam nascido. Tal não é o caso do presidente eleito, que já era vivo em 1969. Mas tinha apenas 14 anos quando tudo aquilo aconteceu, sem ele se dar conta.

Desde dezembro do ano anterior enfrentáva­mos o tacão do AI-5 (epa! 50 anos redondos na próxima quinta-feira) e já testemunhá­ramos a invasão do Teatro Ruth Escobar, na capital paulista, pelo Comando de Caça aos Comunistas, que depredou o cenário e espancou o elenco do musical Roda Viva, de Chico Buarque (pois é, já naquela época Chico incomodava os boçais).

Em vez de punir exemplarme­nte os celerados do CCC, o que fez a ditadura? Proibiu o espetáculo, “degradante e subversivo”, na tacanha avaliação do censor Mário F. Russomano.

Antes de saltar para 1969, outra deplorável lembrança: domingo passado também fez 50 anos que o Teatro Opinião, no Rio, sofreu um atentado à bomba, executado pelos mesmos espiroquet­as do CCC. Se 1968 terminou nesse clima, como esperar um refresco no ano seguinte?

No último dia de agosto de 1969, uma junta militar provisória foi empossada no lugar do general Costa e Silva, que sucumbira a um derrame. Por que não empossaram o vice-presidente Pedro Aleixo? Justamente porque vivíamos numa ditadura e ele era um civil, um vice apenas pro forma, decorativo. Quatro dias depois, houve o sequestro do embaixador norte-americano, e uma nova Lei de Segurança Nacional foi promulgada antes de setembro chegar ao fim. Até que nos enfiaram goela abaixo outro general – o pior de todos: Emílio Garrastazu Médici.

Por tudo isso, a hipótese de voltar 50 anos atrás me soa, na mais complacent­e das estimativa­s, sinistríss­ima, um disparate de quem ignora história ou hibernou mentalment­e naquele período. Ou sofreu uma lavagem cerebral oceânica (de Oceânia, a distopia de 1984).

Se forçado a voltar àqueles idos, talvez me sentisse meio obrigado a ajudar a recriar o irreverent­e semanário Pasquim – ou O Pasquim, como chegou às bancas, em 26 de junho de 1969, mantendo o artigo definido até trocar o desenho do logo no número 289 – e isso daria um trabalho dos diabos.

Primeiro, porque de seus fundadores apenas três ainda vivem, sendo que nenhum dos dois plenamente funcionais (Jaguar e Claudius) toparia encarar o desafio de ressuscita­r, na atual conjuntura, o mais afamado baluarte impresso contra a ditadura militar. Segundo, porque estamos no século 21, o País mudou, o mundo mudou, nós mudamos ou fomos a isso constrangi­dos pelo politicame­nte correto; e porque talvez não faça mais sentido imprimir jornais e distribuí-los analogicam­entes.

Mas se o presidente eleito insistir em voltar ao passado em vez de pensar o presente e o futuro, alguém, motivado pela Terceira Lei de Newton, poderá sentir a necessidad­e de lançar um sucedâneo eletrônico do Pasquim.

Não seria eu, contudo, a pessoa mais indicada para a tarefa, embora seja um dos poucos brancaleon­es sobreviven­tes. À exceção de Jaguar, Ziraldo e Claudius, os verdadeiro­s esteios do jornal (Millôr, Ivan Lessa, Paulo Francis, Henfil) e seu idealizado­r (Tarso de Castro) não habitam mais este mundo.

Dos citados, apenas três merecem ser considerad­os fundadores do jornal. Vez por outra, incluem Ziraldo, Henfil, Francis e até Ivan Lessa entre os criadores do Pasquim. Ledo engano. Tarso, Jaguar, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi (designer), Claudius e Luiz Carlos Maciel – este foi o grupo que bolou e pôs nas ruas o jornaleco. Ziraldo apenas colaborou no primeiro número, com um de seus já conhecidos Zeróis. Henfil estreou no segundo número, Francis no sexto e Ivan no vigésimo sétimo.

Quando em suas páginas debutei, O Pasquim já estava no número 9. Sucesso instantâne­o, começara com uma tiragem de 20.000 exemplares semanais, logo esgotados, chegaria aos 80.000 no número 16, alcançando espetacula­res 200.000, dois meses depois. Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira.

Revivê-lo, numa redação ou como leitor, seria a maior compensaçã­o que poderíamos ter à regressão prometida pelo presidente eleito. Que, receio, seria completa. Ou seja, com o mesmo repertório repressor de 50 anos atrás: censura prévia, apreensões em bancas, atentados à bomba (sorte nossa que a programada para explodir a sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, pifou) e prisões sem base legal (como a que trancafiou 70% dos seus integrante­s na Vila Militar, durante dois meses).

A despeito das negações já feitas e vindouras, isso foi o que eu vi, ouvi e vivi. E ainda que desmintam também a existência do Pasquim – que, aliás, durou mais que a ditadura – não haverá como corroborar esse wishful thinking quando, daqui a poucos meses, a coleção completa do histórico hedbomadár­io estiver todinha digitaliza­da e disponível na internet, com um dispositiv­o de busca completo, por edição, assunto, autores e até palavras. Moral da história: não precisamos voltar a 1969 para termos de volta o passado – no caso, o melhor do passado, e ao alcance do dedo.

Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira

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