A POPULAÇÃO INVISÍVEL DA METRÓPOLE
Redescoberto, estudo feito há 80 anos mostra que a situação de trabalhadores da limpeza pública de São Paulo evoluiu, mas sempre foi muito precária
Um ousado Plano de Avenidas, que dividia as vias perimetrais em torno do centro das radiais, que partiam da área central para os bairros. Um novo aeroporto, que finalmente possibilitava a ligação da capital com o mundo. Os anos 1930 trouxeram modernidade para São Paulo. Mas, mais que isso, foram um período de abertura de caminhos ao conhecimento. Com o jornalista Júlio de Mesquita Filho como principal incentivador, nasceu naquela década a Universidade de São Paulo, cujo decreto de criação considerava que a “cultura filosófica, científica, literária e artística constituem as bases da liberdade e da grandeza de um povo”.
No âmbito da administração municipal, a cidade ganhou um pioneiro Departamento de Cultura, dirigido por ninguém menos que o modernista Mário de Andrade, que entre outros feitos reorganizou a Orquestra Sinfônica Municipal, criou uma Biblioteca Municipal, uma Discoteca Pública e uma Divisão de Documentação Histórica e Social.
Nesse contexto de efervescência intelectual, são feitas pela Escola Livre de Sociologia e Política, fundada em 1933, as primeiras pesquisas de cunho sociológico realizadas institucionalmente no país. A primeira delas, conduzida pelo professor americano Horace Davis em 1934 e publicada em 1935, tinha por objetivo determinar o consumo de 221 famílias operárias residentes em 39 bairros da capital paulista durante um mês, em particular no que se referia à alimentação. Entre as conclusões do estudo estava a constatação de que 21% dos entrevistados eram analfabetos, metade do grupo analisado tinha déficit mensal entre ganhos e despesas e a maior parte dos gastos das famílias (51%) era com alimentação. Essa condição colocava aquelas pessoas no mesmo padrão verificado na Europa um século antes, observou o organizador.
Mas foi a segunda pesquisa, sobre o padrão de vida dos funcionários da limpeza pública, que alcançou maior repercussão. Conduzido pelo sociólogo americano Samuel Lowrie, esse trabalho foi publicado em 1938, na Revista do Arquivo Municipal. O país estava sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, com uma nova Constituição, de 1937, garantindo a todos os cidadãos “o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto”. Dentro desse espírito, a Prefeitura investiu no levantamento da categoria de menor remuneração, partindo do princípio de que “o governo deve ser o primeiro a ajustar os salários, de maneira a fornecer a cada trabalhador uma renda suficiente para viver”.
Uma visita a este trabalho, 80 anos depois, remete ao panorama da vida na cidade naquele período. Desde 1869, quando São Paulo tinha pouco mais de 30 mil habitantes, o serviço de limpeza pública funcionava de maneira regular no município e era um assunto da esfera pública, não mais privada. Nos anos 1930, a cidade já contava com 1 milhão de moradores. O lixo, que vinha sendo carregado por mulas, passara a ser transportado por caminhões movidos a gás produzido pela queima de carvão.
A pesquisa mostra que mazelas sociais constituem um fenômeno antigo, já arraigado na nossa história. O grupo de pesquisadores, comandado por Lowrie, entrevistou 306 famílias. No quesito alfabetização, apenas 58% desses funcionários da limpeza pública afirmaram saber ler e escrever, contra a média geral da cidade, na época de 79% (das pessoas com sete anos ou mais).
No setor da habitação é que aparecem os dados mais alarmantes: em três de cada cinco casos estudados, uma família inteira morava num único quarto. “Em alguns casos, encontramos até nove pessoas dormindo num só quarto”, diz o relatório final da pesquisa. O trabalho prossegue contando que 44% das famílias não tinham chuveiro ou banheiro para uso particular. Nas conclusões, Lowrie não deixa dúvidas: “As condições de trabalho ou os baixos salários, principalmente estes últimos, têm sobre os trabalhadores que entram para a Limpeza Pública um efeito seletivo tal, que com suas famílias eles formam um grupo anormal em comparação com a população da cidade”.
Sete décadas se passaram e uma nova pesquisa sobre o padrão de vida dos funcionários da Limpeza Pública de São Paulo, feita pelo Dieese entre 2008 e 2010 (a última realizada sobre esta categoria), mostra que houve alguma evolução, mas a marginalização social permanece.
O estudo do Dieese revelou que 65% da categoria não havia ultrapassado o nível fundamental de ensino. Dos operários entrevistados, 94% tinham renda familiar mensal inferior a R$ 2,5 mil.
Um dado curioso, que mostra evolução, referese à moradia: mais da metade dos trabalhadores (56%) morava em casa própria. Ocorre que 16% dessas casas estavam em ruas não asfaltadas, 15% eram desprovidas de esgoto, 10% não tinham coleta de lixo na porta, 6% não tinham água encanada e 6% estavam em ruas sem iluminação.
Assim como no trabalho de 1938, o relatório final demonstra que além da situação social a que esta categoria está submetida, pela baixa remuneração, ainda está exposta a discriminação: 42% dos funcionários entrevistados afirmaram já ter sofrido algum tipo de preconceito e segregação durante o exercício de suas funções.
São pessoas como um homem de 38 anos, que afirmou aos pesquisadores: “O nosso serviço não é respeitado pela população geral de São Paulo. Não respeitam porque a gente pega lixo... porque quem pega lixo, para eles, é pior que lixo.”