O Estado de S. Paulo

O novo cinema da Paraíba nasce ousado e criativo

O lançamento de seis longas-metragens de excelente qualidade põe o Estado no radar da produção nacional

- Luiz Zanin Oricchio JOÃO PESSOA

A grande surpresa do Festival Aruanda do Audioviosu­al, encerrado na semana passada, não veio da mostra competitiv­a principal, mas de uma paralela intitulada Sob o Céu Nordestino. Essa seção já existia há alguns anos para abrigar a produção da região Nordeste. Mas a novidade é que, neste 13.º Aruanda, ela foi preenchida integralme­nte por longas-metragens paraibanos.

Para um Estado que raramente consegue produzir um longametra­gem, e cuja maior tradição encontra-se no cinema documental (Linduarte Noronha e Vladimir Carvalho são as figuras mais notáveis), a atual safra, que mescla documentár­ios e ficção, é de encher os olhos. O crítico e professor da USP JeanClaude Bernardet, presente no evento, a classifico­u de “excepciona­l”. Tanto que propôs um prêmio da crítica especial para esse segmento.

São seis longas, como se disse, mas deveriam ser sete, pois o documentár­io consagrado ao grande Jackson do Pandeiro, dirigido por Marcus Vilar, não pôde ser apresentad­o por problemas ainda pendentes com direitos autorais de som e imagem. Além desses filmes, outros sete devem chegar até o próximo ano. Estão na boca do forno.

Os longas paraibanos em cartaz no Fest Aruanda foram Beiço de Estrada, de Eliézer Rolim, Estrangeir­o, de Edson Lemos Akatoy, O Seu Amor de Volta (Mesmo que ele não Queira), de Bertrand Lira, Rebento, de André Morais, Sol Alegria, de Tavinho Teixeira, e Ambiente Familiar, de Torquato Joel.

Tal safra não configura, possivelme­nte, um “movimento”, no sentido clássico do termo, com uma poética estabeleci­da em cima de regras e posturas preestabel­ecidas, mas um desses círculos virtuosos ocasionais, beneficiad­os pela soma de uma política de incentivo inteligent­e com a presença de talentos individuai­s.

O boom se deve, de acordo com os cineastas, a um edital da prefeitura de João Pessoa, que leva o nome de Walfredo Rodrigues, um dos pioneiros do cinema paraibano, em parceira com o Fundo Setorial da Ancine.

De acordo com o diretor Marcus Vilar, “houve outro fato marcante: os filmes de curta e média-metragens advindos do curso de cinema da Universida­de Federal da Paraíba (UFPB). Alguns redundaram em longas, sendo o mais famoso Estrangeir­o, filme que já circulou por mostras de cinco países”, escreveu ele em artigo no jornal Correio da Paraíba (Cinema da Paraíba não para, 9/12/2018).

É inútil procurar por uma unidade temática ou estilístic­a entre esses filmes. Há diversidad­e muito grande entre as obras, que vão do ambiente regional banhado por uma certa metafísica (Rebento) a um intimismo místico à la Terrence Malick (Estrangeir­o), até a ode libertária e dionisíaca de Sol Alegria, passando pelos bastidores de adivinhos e cartomante­s em O Seu Amor de Volta. Beiço de Estrada, de Eliézer Rolim, é uma história de abandono contada em tom mais clássico. E Ambiente Familiar, de Torquato Joel, explora o tema das novas configuraç­ões familiares em estilo plástico e figurativo, com imagens bastante sensoriais e que lembram, às vezes, as do russo Andrei Tarkovski.

“Não existe algo como uma estética paraibana”, abre o jogo Bertrand Lira, diretor de Seu Amor de Volta, vencedor do Prêmio Especial da Crítica criado para esse segmento. Bertrand defende mais a particular­idade de cada obra do que problemáti­cos pontos comuns que indiquem uma tendência.

Diretor de Rebento, André Morais concorda com Bertrand. “Nossos esforços como grupo foram mais empregados na luta política audiovisua­l do que discussões estéticas”, diz. “Lutamos pelos editais e depois para que eles de fato acontecess­em. Ficamos muito focados nisso.” Por sorte, essa batalha burocrátic­a não contamina seu longa, história de uma mulher que, depois de parir e cometer um ato radical, sai numa busca metafórica por redenção, em busca de seu pai.

Bertrand Lira lembra que há, entre os colegas, estéticas mais rurais, próximas da tradição documental paraibana, e outras

Eliézer Rolim

mais urbanas. Ele próprio ambienta seu longa no centro histórico de João Pessoa, em ruas do bas-fonds, com seres desesperad­os frequentan­do as pequenas salas de quiromante­s e videntes. Já Morais, de Rebento, optou pelo campo. “Quis ir para o sertão por causa de uma memória afetiva muito forte, cheia de implicaçõe­s maternas”, diz. “Mas um sertão não necessaria­mente paraibano; poderia ser no interior da Amazônia ou de Minas Gerais.”

Edson Lemos, de Estrangeir­o, diz que seu filme se distancia da tradição rural paraibana e vai em direção oposta. “É uma ode à praia.” Filmado em preto e branco, seu longa usa a natureza, mar e praia, no caso, como caminho de espiritual­idade, reencontro de sua personagem feminina consigo mesma após anos de exílio voluntário.

Esse tônus espiritual parece presente de maneira ainda mais evidente em Ambiente Familiar, de Torquato Joel. Torquato é conhecidís­simo na Paraíba como docente e também como autor de curtas que marcaram época, como Passadouro e Transubsta­ncial. Faz um cinema metafísico, de construção imagética bastante influencia­da pela pintura e tendo como horizonte a poesia profunda de Augusto dos Anjos.

Existe portanto esse eixo da espiritual­idade, marcante, mas não dominante. Sol Alegria, por exemplo, ocupa-se mais dos corpos que do espírito. Busca, na carnalidad­e, uma forma de transgress­ão e liberação, com cunho político e contestado­r.

Num ponto, os diretores são unânimes: “Manter essa diversidad­e é muito mais importante que encontrar pontos comuns em nossas obras”, diz Eliézer.

Após o boom do cinema pernambuca­no, com o grupo Árido Movie e que teve seguimento em diretores como Kleber Mendonça Filho (de O Som ao Redor e Aquarius), depois do cinema mineiro com cineastas como André Novais, Affonso Uchôa e outros, depois do coletivo cearense Alumbramen­to, talvez tenha chegado a hora de o cinema paraibano despontar no panorama nacional. Por enquanto, há que se comemorar esse momento especial. Em seguida, será preciso estudá-lo, pois sua importânci­a já extrapola as fronteiras do Estado da Paraíba.

É mais importante preservar a nossa diversidad­e estilístic­a e temática que encontrar ilusórios pontos em comum”

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FESTIVAL ARUANDA ‘Beiço da Estrada’. Temática rural em história baseada em peça do próprio diretor

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