O Estado de S. Paulo

O ano da glória de José Saramago

- HUMBERTO WERNECK HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Numa das curvas da entrevista – e foram tantas, em mais de seis horas de conversa, ao longo de três finais de tarde, sem contar o papo que rolou ao largo do gravador –, achei que era tempo de botar na roda o assunto de que muito se falava, e que, também por isso, me levara a Lanzarote, nas ilhas Canárias.

Foi eu pronunciar as duas palavras e José Saramago abanou um gesto de enfado: fazia, disse, três ou quatro anos que seu nome entrava no fervedouro das cogitações do Prêmio Nobel da Literatura. “Nunca fiz nada para que isso sucedesse”, acrescento­u, semicerran­do os olhos por detrás da formidanda armação dos óculos.

Reagi de pronto: por favor, não diga que tanto faz ganhar o Prêmio Nobel!

Provocado, ele se encheu de súbita vivacidade: “Não, não, não é tanto faz” – e admitiu que o Nobel, se não melhora a obra de ninguém, ao menos engorda a conta bancária do autor. E não era gordura pouca: naquele ano, quase 1 milhão de dólares. “Agora, se vem o Prêmio Nobel...” “... o senhor o aceita resignadam­ente, não é?”

Sorriu: “Sim, posso dizer, resignadam­ente...”.

Estávamos nos últimos dias de junho de 1998. De volta ao Brasil, sugeri ao comando da Playboy deixarmos a entrevista para a edição de outubro, mês em que a Academia da Suécia anuncia o ganhador do prêmio. Vai que...

E não é que foi? Na véspera, 7 de outubro, com a revista já nas bancas, liguei para um amigo em Paris, e ele, como sempre bem informado, contou que os favoritos eram dois lusitanos, José Saramago e António Lobo Antunes.

Fiquei apreensivo: um e outro eram merecedore­s do mais alto galardão literário, mas o repórter entrevisto­u apenas um – e, se der o outro, terá, digamos, cometido um erro de português...

Madruguei na redação, onde o mesmo informante me deu a notícia tranquiliz­adora.

No mês seguinte, Saramago fez saber que planejava incluir passagens da entrevista no discurso que faria, em dezembro, ao receber o diploma e o cheque das mãos do rei Carlos Gustavo, da Suécia: Tê-lo-á feito?, poderia indagar o atual ocupante do Palácio do Planalto (que, aliás, não deixa de ser um caso de mesóclise histórica, imprensado que está entre Dilma e Bolsonaro). Com o perdão dos maus-tratos à língua, checá-lo-ei dia desses.

*

Faz 20 anos o Nobel de Saramago, e para assinalar a data redonda sua editora brasileira, a Companhia das Letras, acaba de lançar uma esmerada caixinha contendo dois volumes. Num deles, Um País Levantado em Alegria, o brasileiro Ricardo Viel, da Fundação José Saramago, de Lisboa, selecionou textos e imagens que documentam e ilustram a premiação, aí incluído o discurso em Estocolmo.

O outro livro, Último Caderno de Lanzarote, tira da gaveta o derradeiro volume dos diários de José Saramago. Cobre o ano do Nobel, após o qual o escritor, falecido em 2010, provavelme­nte já não dispôs de tempo, sossego e/ou paciência para anotar fatos e impressões no dia a dia.

A notícia da premiação, em 8 de outubro, foi apanhá-lo em Frankfurt, durante a feira anual do livro. Impression­a o laconismo de Saramago ao registrar, enigmático, os sucessos de seu maior dia de glória: “Aeroporto de Frankfurt. Prêmio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevista­s”. Sua prosa só voltará a ser fluente em 7 de dezembro, data em que empalmou o diploma e embolsou seu quase milhão de dólares.

Para o repórter da finada Playboy, uma boa surpresa: se não tiver aproveitad­o trechos da entrevista no discurso de Estocolmo, Saramago ao menos quis que parte dela entrasse no Último Caderno de Lanzarote, onde ocupa 15 páginas.

Duas décadas depois, a exumação parcial daquela conversa veio reavivar lembranças de horas passadas numa casa que se chama, exatamente, A Casa, construída por Saramago e sua mulher, Pilar del Río, na localidade de Tías, em Lanzarote.

A piscina, com apenas 7 metros e meio de compriment­o, que ele cruzava pelo menos 30 vezes por dia. O fino cascalho vulcânico, negro ou cor de tijolo, a recobrir retalhos do jardim e boa parte da ilha. A agitação de Greta, Camões e Pepe, os três pequenos cães do casal, que à noite, na cozinha, postavam-se ao pé do dono, o qual, meticuloso até nisso, ia cortando e distribuin­do rodelas de banana. Um deles, Camões, contou-me Saramago, comia também livros, tendo dado cabo de duas biografias de Nelson Mandela. Na ocasião de minha visita, estava a roer um álbum com reproduçõe­s de Goya. Outro, Pepe, assim fora batizado para que não sobrasse para o dono o apelido de que na Espanha poucos josés escapam.

As gravações transcorre­ram no escritório, no segundo piso, onde Saramago produzia, pela manhã e no final da tarde, sua quota diária de prosa, nunca mais de duas laudas. Pode parecer pouco, disse ele, mas no final do ano terão sido mais de 700.

Àquela altura, o texto em que trabalhava era As Pequenas Memórias (2006), e em torno dele deu-se um episódio a meu ver ilustrativ­o do humor peculiar – para dizer o mínimo – de José Saramago.

O relato chamava-se, então, O Livro das Tentações, e ao ouvir o título não tive como não pensar no seu primeiro romance, Terra do Pecado, obra de juventude. Este gajo quis ser galhofeiro: não é curioso, perguntei, que alguém comece no pecado para chegar às tentações?

No rosto do escritor, nada que lembrasse um sorriso. “Mas são tentações de outra ordem”, corrigiu José Saramago, como quem passasse um pito, conferindo tons de imbecilida­de a uma observação que, além de jocosa, se pretendia fina. Quem manda ser engraçadin­ho com um oceano de permeio?

Vai que ele ganha o Nobel... – apostou o pessoal da finada ‘Playboy’. E não é que acertou?

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