O Estado de S. Paulo

Incongruên­cias da Justiça

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As garantias do Estado Democrátic­o de Direito não conduzem à impunidade. O problema não é a lei, mas quem a aplica.

Tornou-se comum a crítica contra a legislação penal e processual penal. Credita-se à lei excesso de brandura, o que a tornaria aliada, ou até mesmo causa, da impunidade. Segundo esse modo de ver as coisas, os problemas da Justiça não estariam na lentidão e na ineficiênc­ia, mas no próprio Direito. Tal ideia pôde ser observada no processo criminal relativo às pedaladas fiscais, que está na 15.ª Vara Federal de Brasília.

O juiz Francisco Codevila aceitou a denúncia contra quatro integrante­s do governo de Dilma Rousseff pelo crime de contrataçã­o indevida de operação de crédito, previsto no art. 359-A do Código Penal, dentro do capítulo dos crimes contra as finanças públicas. Ao delito de “ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito, interno ou externo, sem prévia autorizaçã­o legislativ­a” é aplicada a pena de um a dois anos de reclusão. No processo relativo às pedaladas fiscais, tornaram-se réus o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, o ex-presidente do Banco do Brasil Aldemir Bendine, o ex-secretário do Tesouro Arno Augustin e o exsubsecre­tário de Políticas Fiscais Marcus Pereira Aucélio.

Ao receber a denúncia, o juiz da 15.ª Vara Federal de Brasília também determinou o arquivamen­to da investigaç­ão em relação à ex-presidente Dilma Rousseff e ao ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho, em razão da prescrição da pretensão punitiva. Como Dilma e Coutinho têm mais de 70 anos, o prazo prescricio­nal é reduzido pela metade.

Ao reconhecer a prescrição, o juiz fez críticas ao que chamou de “flagrante incongruên­cia do sistema legal”, por sua suposta brandura em relação às penas. Ao lembrar que o crime investigad­o tem pena máxima de dois anos de reclusão, o juiz afirmou que “é justamente este aspecto da lei que possibilit­ou a prescrição prematura e, caso não caísse na prescrição, possivelme­nte, redundaria na imposição de pagamento de cesta básica”, já que tal pena possibilit­a em tese a transação penal.

A legislação foi criticada, mas não houve nenhum comentário sobre a lentidão do Ministério Público em relação a essa investigaç­ão. A causa da prescrição não foi a pena máxima ser de dois anos de reclusão. Eventuais crimes praticados por Dilma Rousseff e Guido Mantega estão agora prescritos porque o Ministério Público foi muito lento, num caso que não envolve nenhuma especial complexida­de probatória.

Ao levantar o sigilo do caso, determinan­do que a tramitação do processo ocorra dentro da regra geral de publicidad­e, o juiz da 15.ª Vara Federal reconheceu que os fatos “já são do conhecimen­to público, desde a época do juízo político”, referindo-se ao processo de impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff. Ora, se os fatos já eram de conhecimen­to público desde aquela época, qual é a razão para que o Ministério Público tenha demorado tanto para apresentar a denúncia?

É enganoso tratar a prescrição como aliada da impunidade. Aumentar indefinida­mente o período que o Estado tem para investigar e punir os crimes não contribuir­á para a diminuição da criminalid­ade e tampouco para uma maior efetividad­e na condenação dos criminosos. A prescrição é um grande instrument­o para que o poder público atue com diligência, sem atrasos, e para que se subtraia do arbítrio da autoridade a pessoa sob investigaç­ão. Logicament­e, quanto mais tempo transcorre dos fatos mais difícil é a apuração exata do que de fato ocorreu. Também por isso, a lei estabelece prazos para que o Estado investigue e puna os crimes.

A prescrição é uma garantia para o cidadão. Basta pensar nos abusos a que a população estaria sujeita se o Estado pudesse a qualquer tempo alegar fatos pretéritos que supostamen­te configurar­am um crime. Ou que um inquérito ficasse aberto por anos, talvez décadas, sujeitando o cidadão a todos inconvenie­ntes daí decorrente­s, sem que o Estado tivesse prazo algum para encerrar a investigaç­ão.

As garantias próprias do Estado Democrátic­o de Direito não conduzem à impunidade. O problema não é a lei, e sim as deficiênci­as de quem aplica – ou deveria aplicar – a lei.

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