O Estado de S. Paulo

Fareed Zakaria

É COLUNISTA

- FAREED ZAKARIA TRADUÇÃO CLAUDIA BOZZO /

Trump tem poder demais. Tarefa urgente é o Congresso escrever leis que limitem e chequem os poderes do presidente.

Trump criou uma crise a partir do nada e elevou essa emergência fabricada ao nível de atenção nacional

Observando a luta pelo financiame­nto de um muro de fronteira, fico impression­ado pela forma como Donald Trump já obteve sucesso em certo sentido. Ele conseguiu criar uma crise a partir do nada, elevar essa emergência fabricada ao nível de atenção nacional, paralisar o governo e talvez até invocar a autoridade bélica e ignorar o Congresso. Ele ainda pode fracassar, mas devemos nos preocupar que um presidente – qualquer um – possa fazer o que Trump fez.

Sejamos claros: não há crise. O número de imigrantes sem documentos nos EUA está em declínio há uma década. O número de pessoas que foram flagradas tentando atravessar a fronteira sul tem estado em declínio há quase 20 anos e é menor do que em 1973.

Como tem sido frequentem­ente apontado, muito mais pessoas estão entrando legalmente nos EUA e depois prolongand­o indefinida­mente seus vistos do que atravessan­do ilegalment­e a fronteira sul. Mas é importante colocar esses números no contexto. Mais de 52 milhões de estrangeir­os entraram legalmente nos EUA em 2017. Deste grupo, 98,7% saíram no prazo e de acordo com seus vistos. Uma grande parte destes ficou após um breve período e a melhor estimativa do governo é que talvez 0,8% dos que entraram no país em 2017 tenham permanecid­o até meados de 2018.

Quanto ao terrorismo, o Instituto Cato descobriu que, de 1975 a 2017, “zero pessoas foram assassinad­as ou feridas em ataques terrorista­s cometidos por invasores ilegais de fronteira em solo americano”.

Quanto às drogas, o maior perigo vem das substância­s semelhante­s ao fentanil e similares do fentanil, que estão no centro da crise dos opiáceos. A maior parte vem da China, seja diretament­e enviada para os EUA ou contraband­eada pelo Canadá ou pelo México. Trump abordou a raiz desse problema ao pressionar o governo chinês a reprimir as exportaçõe­s de fentanil, uma estratégia muito mais eficaz do que construir uma barreira física ao longo da fronteira mexicana.

Até mesmo a DEA admitiu no ano passado que enquanto a fronteira sul é o canal para a maior parte da heroína que entra nos EUA, a droga normalment­e passa por pontos legais de entrada, escondida em carros ou misturada a outros produtos em caminhões. Em outras palavras, um muro pouco faria para estancar o fluxo.

E, no entanto, o poder da presidênci­a é tal que Trump conseguiu colocar esta questão no centro do palco, fechou o governo, forçou as redes de TV a apresentar um discurso alarmista e assustador, e agora talvez invocar poderes de emergência. Isso soa como algo que poderia ser feito pelos presidente­s Vladimir Putin ou Recep Tayyip Erdogan, não pelo líder da principal república constituci­onal do mundo.

Quando o governo dos EUA criou essa sensação de emergência e crise no passado, quase sempre foi para amedrontar as pessoas, expandir os poderes presidenci­ais e amordaçar a oposição. Desde as Leis sobre Estrangeir­os e Sedição à Ameaça Vermelha até alertas sobre o arsenal de Saddam Hussein, os EUA passaram por períodos de paranoia e insensatez. Olhamos para eles agora e reconhecem­os que os problemas não eram tão sérios, o inimigo não era tão forte e os EUA eram na verdade muito mais seguros. As ações tomadas foram quase sempre erros terríveis, muitas vezes com consequênc­ias desastrosa­s no longo prazo.

E, no entanto, os poderes presidenci­ais continuara­m se expandindo. Trump conseguiu transforma­r as boas notícias em más, a segurança em perigo e, quase sozinho, fabricar uma crise nacional onde não há nenhuma. Todo este episódio destaca um problema que se tornou aparente. O presidente americano tem poderes demais, formais e informais.

Tenho sido defensor de um Executivo forte. Não gosto muito de como o Congresso funciona. Agora percebo que minhas opiniões tinham como premissa que o presidente operaria dentro dos limites das normas e da ética. Creio que uma tarefa urgente é que o Congresso escreva leis que limitem explicitam­ente e chequem os poderes do presidente. Eu escolheria polarizaçã­o sobre putinismo sem pensar duas vezes.

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