O Estado de S. Paulo

A BABEL QUE SUSTENTA BOLSONARO

Vinte dias depois da posse, conflitos entre alas ideológica­s causam fissuras no governo

- José Fucs.

Ao completar 20 dias, o governo Bolsonaro começa a revelar seu perfil. O período é curto para conclusões, mas já se vê seis grandes grupos em ação. Militares, liberais, lavajatist­as, políticos, evangélico­s e ideológico­s seguidores do escritor Olavo de Carvalho formam a babel que dá sustentaçã­o ao presidente, conta

Ao completar os primeiros vinte dias, o governo Bolsonaro começa a revelar os traços básicos de seu perfil. Com as movimentaç­ões iniciais dos 22 ministros e as nomeações de boa parte dos ocupantes do segundo e terceiro escalões, tornouse possível identifica­r algumas marcas do novo governo. É um período curto para tirar conclusões definitiva­s, mas já dá para ter ao menos uma ideia do que pode vir por aí.

Em meio a declaraçõe­s desencontr­adas e recuos do presidente e de seus ministros em anúncios de medidas oficiais, ficou clara a existência de uma babel ideológica no governo, que gerou diversos conflitos desde a posse, em 1.º de janeiro.

Aparenteme­nte, as divergênci­as até agora não deixaram feridas profundas. Mas podem ameaçar a unidade da grande frente formada para eleger Bolsonaro, refletida no novo Ministério, se os conflitos aumentarem, em vez de diminuírem, nas próximas semanas e meses.

A frente inclui seis grandes grupos, com pesos diferentes na administra­ção e influência distinta junto ao presidente – os militares, os liberais, os lavajatist­as, os políticos, os evangélico­s e os ideólogos e olavistas, que seguem as teorias do pensador e escritor Olavo de Carvalho (veja o quadro ao lado).

Em paralelo, com forte influência sobre as decisões do presidente e uma identidade maior com militares e olavistas, opera o núcleo familiar, composto pelos três filhos de Bolsonaro: Flávio, senador eleito pelo Rio de Janeiro, suspeito de envolvimen­to em operações irregulare­s com funcionári­os, Eduardo, deputado federal por São Paulo e talvez o mais influente da troika, e Carlos, vereador no Rio, todos integrante­s do PSL, o mesmo partido do pai.

Mosaico ideológico. Muitas vezes, esses grupos têm ideias e visões divergente­s e contraditó­rias sobre o País e o mundo. Não por acaso alguns analistas estão chamando esse processo de “balcanizaç­ão”, em referência à divisão de poder entre grupos conflitant­es ocorrida na Península Balcânica, localizada na região sudeste da Europa, entre o início dos séculos 19 e 20.

De certa forma, o mosaico ideológico montado pelo novo governo também existia nas gestões do PT e mesmo do PSDB. Agora, porém, a fragmentaç­ão parece mais acentuada, talvez porque os grupos só tenham se aproximado para valer após as eleições e, em alguns casos, só depois da posse.

Um exemplo que ilustra com perfeição o “cabo de guerra” travado dentro do governo é a disputa pela Agência Brasileira de Promoção de Exportaçõe­s e Investimen­tos (Apex), entre a ala liberal, liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a ala dos olavistas, representa­da pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Guedes contava com a transferên­cia da Apex para sua órbita, com o objetivo de dinamizála e transformá-la numa ferramenta poderosa de negócios no exterior. Mas o órgão, que já foi ligado ao extinto Ministério do Desenvolvi­mento, Comércio Exterior e Serviços, acabou ficando mesmo com o Itamaraty, onde já estava no governo Temer. A decisão foi consumada apesar dos sinais emitidos por Araújo de que poderá levar em conta aspectos ideológico­s na atuação da Apex, em prejuízo de uma filosofia mais pragmática do comércio internacio­nal.

Pivô das divergênci­as. Para completar o quadro, Araújo ainda nomeou dois diretores da Apex ligados a Eduardo Bolsonaro – a empresária Letícia Catelani e o advogado Márcio Coimbra, ex-assessor parlamenta­r do Senado, que acompanhou o filho do presidente em sua recente viagem aos Estados Unidos. Letícia teria sido responsáve­l pela tumultuada saída do ex-presidente da empresa, Alex Carreiro, substituíd­o pelo diplomata Mário Vilalva apenas uma semana depois de nomeado.

Numa outra frente, o grupo dos lavajatist­as, capitanead­o pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, levou a pior num conflito com a ala dos políticos, à qual pertence o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, talvez o grande pivô das divergênci­as no governo desde a eleição de Bolsonaro. Moro, a quem a Fundação Nacional do Índio (Funai) era ligada até ser transferid­a para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, havia determinad­o a exoneração de Azelene Inácio, diretora de Proteção Territoria­l do órgão. Mas uma semana depois Onyx ainda não havia levado adiante a decisão e publicado o desligamen­to de Azelene no Diário Oficial da União.

Nas próximas semanas, novas disputas do gênero estão no radar. No início de fevereiro, com o provável encaminham­ento do projeto de reforma da Previdênci­a ao Congresso, tudo indica que as tensões vão se acentuar entre a ala dos militares, que defende em público a manutenção dos privilégio­s da categoria – com a exceção do vice-presidente, o general Hamilton Mourão –, e a dos liberais, que apoia uma mudança ampla, englobando o pessoal da caserna.

O próprio presidente terá de tomar partido nesta questão e pelo que se pode deduzir do que tem dito a tendência é ele cerrar fileira com os militares e a ala política representa­da por Onyx, também defensor de uma reforma mais branda, mesmo com o déficit da Previdênci­a chegando à estratosfe­ra e compromete­ndo o equilíbrio das contas públicas. “A melhor reforma é a que passa na Câmara e no Senado”, disse Bolsonaro, sugerindo que está pouco inclinado a apresentar um projeto mais duro para resolver o problema de vez, como propõe a ala liberal.

Vantagem militar. A avaliação da força dos grupos não pode ser feita apenas com base no número de ministério­s conquistad­os por cada um. Ela tem de incluir seus tentáculos nos escalões inferiores em todas as pastas. Depende também do orçamento total controlado por cada ala, do impacto das pastas na economia e do grau de prestígio de seus representa­ntes junto ao presidente e a seus filhos, cuja participaç­ão ativa no governo preocupa até os aliados mais próximos.

Dito isso e levando em conta apenas o primeiro escalão, pode-se dizer que os grupos militar e político, à frente de sete ministério­s cada um, são os que concentram a maior fatia de poder no governo. Depois deles,

A grande questão, hoje, é saber por quem dobrarão os sinos do presidente

vêm as alas liberal, com três ministério­s, incluindo o Banco Central, lavajatist­a e olavista, com dois cada, e evangélica, com apenas um ministério.

Quando se consideram também as nomeações de segundo escalão claramente identifica­das com uma das alas, o grupo militar leva larga vantagem, com nada menos que 32 representa­ntes, espalhados por 13 ministério­s, seguido pelos núcleos político, com 16 integrante­s, liberal, com 13, olavista, com 12, lavajatist­a, com 10, e evangélico, com 3.

Cartilha. Conhecido até pouco tempo atrás por um contingent­e restrito de iniciados e seguidores, entre eles Bolsonaro e seus filhos, Olavo de Carvalho ganhou os holofotes e conquistou trincheira­s importante­s na nova gestão. “Vivi para ver um filósofo indicar mais gente para o governo que o MDB”, afirmou na semana passada o cineasta Josias Teófilo, diretor do filme

O Jardim das Aflições, sobre a vida e a obra de Olavo. No primeiro escalão, o MDB amealhou apenas o Ministério da Cidadania, ocupado pelo deputado federal gaúcho Osmar Terra.

Além de ter indicado os ministros Ernesto Araújo, de Relações Exteriores, e Ricardo Velez Rodriguez, da Educação, duas áreas considerad­as essenciais pelos seus pupilos para determinar o sucesso do governo, Olavo também é o “padrinho” de Filipe Garcia Martins Pereira, assessor internacio­nal de Bolsonaro, instalado no Palácio do Planalto, de Carlos Nadalim, secretário de Alfabetiza­ção do Ministério da Educação, e de Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, um território dominado por liberais que não rezam pela sua cartilha.

Como se pode observar, na babel ideológica do governo Bolsonaro, parece complicado os diferentes grupos falarem a mesma língua. Só o tempo vai dizer se o presidente conseguirá administra­r as divergênci­as entre as alas e se ele vai enfrentar o problema sem causar grandes solavancos.

Para manter unida a frente heterogêne­a que lhe dá suporte, Bolsonaro terá de mostrar que está preparado para atuar como um magistrado nos conflitos.

Divisor de águas. Segundo relatos de quem já teve contato com Bolsonaro e por tudo o que se pôde observar desde a campanha, ele tende a mudar de opinião conforme a visão de seu interlocut­or sobre uma questão qualquer. Ele também já mostrou que costuma falar sobre temas que não domina, antes de formar uma convicção a respeito do melhor caminho a seguir. Assim, acaba dando a impressão de ser uma espécie de biruta, que oscila de acordo com a direção do vento, gerando inseguranç­a não só no mundo dos negócios, mas para todos os brasileiro­s que acompanham seus movimentos e têm de tomar decisões para si mesmos e suas famílias.

Como diz a expressão criada pelo poeta inglês John Donne (1572-1631) e imortaliza­da pelo escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961), a grande questão é saber por quem dobrarão os sinos de Bolsonaro nos próximos meses e anos. Aparenteme­nte, nas primeiras semanas de governo, ele se curvou às alas política, militar e olavista nas questões que envolviam a economia, em detrimento da ala liberal, encarregad­a de conduzir as reformas de que o Brasil precisa para voltar a crescer.

Bolsonaro também demonstrou enorme interesse nas questões de costumes e educaciona­is, caras às alas olavista e evangélica, e nas de política externa, uma espécie de fetiche para os seguidores de Olavo. Sua postura em relação à reforma da Previdênci­a pode ser um “divisor de águas” ou confirmar as previsões mais sombrias. Logo mais, se o envio da reforma previdenci­ária ao Congresso no início de fevereiro se confirmar, a gente saberá a resposta.

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