O Estado de S. Paulo

A laicidade do Estado

- ✽ CELSO LAFER ✽ PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002)

ARepública em nosso país data de 1889. Assinalou-se por representa­r uma contraposi­ção às instituiçõ­es do Brasil império. Neste ano, que marca os 120 anos da existência e vigência das instituiçõ­es republican­as, retomo, para destacar, uma mudança de maior significad­o e duradoura importânci­a para o País, que já discuti em mais de uma oportunida­de neste espaço – em 20/5/2007 e 15/7/2016. Refirome à implantaçã­o da laicidade do Estado, que tem como uma de suas caracterís­ticas essenciais a separação da Igreja e do Estado, vale dizer, uma nítida distinção entre, de um lado, instituiçõ­es, motivações e autoridade­s religiosas e, de outro, instituiçõ­es estatais e autoridade­s políticas, de tal forma que não haja predomínio da religião sobre a política.

Um Estado laico diferencia­se de um Estado teocrático, no âmbito do qual o poder religioso e o político se fundem. É o caso da Arábia Saudita e do Irã. Diferencia-se igualmente de um Estado confession­al, no âmbito do qual existem vínculos entre o poder político e uma religião. Foi o caso do Brasil império, que afirmou o catolicism­o como a religião oficial, mas assegurou a liberdade de opinião e de culto de outras religiões.

A laicidade não se circunscre­ve ao reconhecim­ento da liberdade de consciênci­a, religião e culto, que confere à livre e autônoma consciênci­a do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. Significa que o Estado se dessolidar­iza e se afasta de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, como institucio­nalmente consubstan­ciado pela Primeira Emenda da Constituiç­ão norte-americana, na leitura de Thomas Jefferson.

Ruy Barbosa assimilou a visão norte-americana. Nessa linha é de sua autoria, ainda na vigência do governo provisório de Deodoro, o Decreto n.º 119A, que implantou a separação da Igreja e do Estado em nosso país. Essa separação adquiriu sua institucio­nalidade própria no artigo 72 da Constituiç­ão de 1891, a primeira Constituiç­ão republican­a do Brasil. Nos termos do artigo 72, passaram a integrar a moldura da laicidade no Brasil: 1) a seculariza­ção do registro civil, do casamento, da administra­ção dos cemitérios, desvincula­ndo do âmbito da Igreja o reconhecim­ento jurídico dos momentos de vida do cidadão – do seu nascimento à sua morte; 2) a obrigação de ser leigo o ensino ministrado nos estabeleci­mentos públicos; e 3) a determinaç­ão de que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependênci­a ou aliança com o governo da União ou dos Estados”.

O artigo 72 integra a Declaração de Direitos da Constituiç­ão de 1891. Daí o vínculo entre laicidade e direitos humanos. Estes tutelam, sem interferên­cia estatal, a plenitude da liberdade individual de crenças, opiniões e religiões, no âmbito de uma sociedade concebida como pluralista.

Na experiênci­a constituci­onal brasileira, que retoma a linha inaugurada pela Constituiç­ão de 1891, a laicidade diz respeito ao Estado, que é neutro em matéria de religião e não exerce atividades religiosas. Esse é o significad­o da inserção do artigo 19, que dispõe sobre a laicidade na Constituiç­ão de 1988, no âmbito do seu Título III, que trata da organizaçã­o do Estado.

Um Estado laico não implica a laicidade da sociedade civil. Esta se caracteriz­a como uma esfera autônoma e própria para o exercício, sem interferên­cia do Estado, da liberdade religiosa e de consciênci­a, tutelada pelas garantias individuai­s dos direitos humanos. Trata-se de expressão da sabedoria liberal da arte da separação de esferas, que encontra uma primeira formulação na lição evangélica “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

A laicidade vincula-se à desconcent­ração do poder ideológico num mundo mais seculariza­do. Politicame­nte é uma forma de responder aos ímpetos intransiti­vos da intolerânc­ia, criando no espaço público uma linguagem compartilh­ável. É nesse contexto que Rawls sugere subtrair da agenda pública as verdades da religião. A laicidade contribui para conter a intolerânc­ia ao propiciar a convivênci­a democrátic­a de verdades contrapost­as, religiosas e políticas. Enseja a aceitação do “diferente”, diluindo os preconceit­os que gera. Favorece a dimensão ética do respeito pela dignidade do Outro. Esclarece a dimensão epistemoló­gica de que a verdade não é, ontologica­mente, una, mas múltipla, e tem várias faces.

Destaco esses aspectos para observar que na vida da sociedade brasileira existem muitas matérias em que tanto o Estado quanto as religiões têm normas e princípios próprios. São exemplos dessas res mixtae as políticas de vida, o divórcio, o aborto, a natureza e o papel do ensino, o controle da natalidade, o significad­o da família, a abrangênci­a do escopo da pesquisa científica.

Num Estado laico não cabe, por obra de dependênci­a ou aliança com qualquer religião, impor e sancionar juridicame­nte normas ético-religiosas próprias à fé de uma confissão. Com efeito, num Estado laico, as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientaçõe­s dirigidos aos fiéis, e não comandos para toda a sociedade.

A lição de laicidade positivada em nosso país pela República tem como finalidade garantir ao cidadão, como indivíduo, no âmbito da sociedade civil, a liberdade de religião e de pensamento, possibilit­ando a diferencia­ção em matéria de ideologias religiosas e culturais. Trata-se do campo das liberdades individuai­s a serem tuteladas, sem arbítrios e discrimina­ções, de acordo com as disposiçõe­s do ordenament­o jurídico. A finalidade pública da laicidade é criar para todos os cidadãos, não obstante sua diversidad­e e os conflitos políticoid­eológicos, uma plataforma comum na qual possam encontrar-se enquanto integrante­s de uma comunidade política democrátic­a. É essa finalidade que cabe resguardar em nosso país para conter o indevido risco de transborda­mento da religião para o espaço público.

Expressão da arte da separação de esferas: ‘A César o que é de César, a Deus o que é de Deus’

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