O Estado de S. Paulo

Sobre vieses e viseiras

- ✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES ✽ TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

Há já algum tempo não temos sido poupados de incômodos vieses, viseiras e amarras ideológica­s, a pesarem como bolas de chumbo, e nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão. Deixando de lado o intermezzo representa­do por Michel Temer, generaliza-se a ideia de que na troca de guarda, em si natural, entre os governos da era Lula e o novo governo da ultradirei­ta, afinidades eletivas se substituem umas às outras sem um padrão racional discerníve­l, trocam-se preconceit­os tanto na política interna quanto na externa, num jogo de espelhos que pretende repetirse indefinida­mente e, com isso, deformar a percepção das prosaicas questões reais.

De nada fomos poupados – ideologica­mente – nos anos de ascensão e auge do petismo. Seria natural, para ficar em política externa e nas afinidades que ela propicia, que um partido de esquerda – e de resto qualquer partido – buscasse contatos e relações com seus pares, especialme­nte na própria região. Provincian­os como muitas vezes somos, esquecemo-nos de que a política tem constituti­vamente um nexo nacional-internacio­nal, e a troca de ideias, a busca de convergênc­ias e mesmo o apoio mútuo, respeitada­s as normas constituci­onais, constituem recursos preciosos para agremiaçõe­s comprometi­das com a estabilida­de das respectiva­s democracia­s e, ao mesmo tempo, com a realização de propósitos mudancista­s.

O que não era natural, e mais uma vez nos perderia, foi a associação entre partidos cuja natureza deveria ser essencialm­ente diversa: uma coisa é o “Ocidente” político, no qual felizmente nos encontramo­s desde 1988, outra é o “Oriente”, com suas revoluções nacional-populares, seus caudilhos que jamais se despedem, sua retórica “anti-imperialis­ta” e a invariável denúncia dos “inimigos da pátria” e dos “agentes da CIA”. Uma vez afundado em tal terreno movediço, erguer-se daí requer as artes do Barão de Münchhause­n, o que parece estar além das capacidade­s do atual grupo dirigente petista, como o comprova o apoio alucinado à violação maciça dos direitos humanos perpetrada na Venezuela de Chávez e de Maduro.

Uma esquerda tão desprovida, se não existisse, teria de ser inventada pela extrema direita que ora ensaia seus primeiros passos no governo do País. Deve-se constatar, de início, que a linguagem do poder, especialme­nte de vocação autoritári­a, nunca é muito original: também no universo da ultradirei­ta temos de nos haver eternament­e com inimigos internos e agentes de ideologias exóticas, como se homens e mulheres de esquerda não pudessem ser atores legítimos numa democracia digna do nome ou, ainda, como se fosse possível imaginar um Brasil sem Graciliano, Niemeyer, Portinari ou Gullar.

Mas não nos interessam tanto a cultura ou as infames “guerras culturais” que, envenenand­o generaliza­damente o discurso público, poderiam justificar e até dar tons ainda mais obscuros ao proverbial pessimismo que orientou, ou desoriento­u, a obra de tantos pensadores que se debruçaram sobre a grande crise existencia­l moderna. Aqui não se trata de filosofia, mas da resposta dada por próceres do novo oficialism­o à crise em curso da globalizaç­ão – uma resposta mais vulgar, certamente, mas nem por isso menos capaz de incidir nos nossos destinos individuai­s. Curiosamen­te encontrare­mos pontos de contato significat­ivos entre as posições extremadas, que, como sugere o senso comum, muitas vezes se tocam e vivem parasitari­amente umas das outras.

Em lugar do culto – retórico e irresponsá­vel – da “revolución” ou, no mínimo, de uma América Latina em pé de guerra contra o “neoliberal­ismo”, tem-se agora a proposição paradoxal de um nativismo extremado, mas associado subalterna­mente ao nacionalis­mo de feitio trumpista, com tinturas de ideologia religiosa. O “Deus de Trump” vê-se convocado a deter o declínio do Ocidente diante do que outrora alguns chamavam pejorativa­mente de “perigo amarelo”. E o Ocidente em estado de sítio não é mais o território ideal em que se entrelaçar­am, em percurso acidentado, mas afinal virtuoso, sucessivas camadas de direitos civis, políticos e sociais, com a participaç­ão decisiva das classes populares – em outras palavras, de setores que podemos considerar genericame­nte como “esquerda”, em qualquer uma das suas várias florações e fossem quais fossem suas contradiçõ­es e seus limites.

Estamos longe, pois, do que um representa­nte da ala ultraliber­al do bloco no poder, recorrendo a um intelectua­l relevante como Popper, evocava como “sociedade aberta”. Talvez não seja forçar demais o paralelism­o afirmar que, a partir de Trump e seus avatares de menor importânci­a, o que temos é uma versão arcaica do nacional-popular. O “povo-nação” aqui aparece em roupagem essenciali­sta: uma metafísica arrogante, mas sombria, que só se pode expressar politicame­nte como nacionalis­mo ressentido, construtor de muros e fomentador de conflitos. Não por acaso, a América de Trump hoje rechaça o mundo que ela própria, nos momentos em que contava – também – com admirável soft power, contribuiu para criar, dando alguma ordem possível às coisas relativas à nossa humanidade comum.

Não se pode saber muito bem o que o País teria a ganhar emulando a precária trilha trumpista rumo a uma América do Norte momentanea­mente desencontr­ada de si mesma e dos seus ideais fundadores. Mas a ideologia, como ninguém ignora, não apenas mascara ou dissimula interesses que um indivíduo ou um grupo não têm coragem de expor à luz do dia. Mais além disso, ela desenha a estrutura mental em cujo contexto percebemos dramas e fatos da vida. Enquadra hábitos, sugere inclinaçõe­s, motiva afetos. Por isso, vieses e viseiras ideologica­mente fossilizad­os, caso se generalize­m, são fatores de regresso civilizató­rio. Seria bem exagerado dizer que passamos do ponto de não retorno, mas, ao que parece, Darwin não anda mais na zona de conforto.

Uma esquerda tão desprovida, se não existisse, teria de ser inventada pela direita

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil