O Estado de S. Paulo

Nos Estados Unidos, direito a armas ainda vive impasse

Debate público sobre restrições cresce após massacres em escolas, mas ainda não há mudança de lei à vista

- Marco Antônio Carvalho

Mais arma do que gente. No país onde o número de armas (393,3 milhões, estima a organizaçã­o Small Arms Survey) supera a população (325 milhões), nem o recorde de mortes violentas nem os massacres cada vez mais frequentes parecem ser capazes de impulsiona­r uma política mais restrita. Os Estados Unidos, diante de quase 40 mil mortes violentas anuais, mantêm a divisão entre favoráveis à restrição, que acreditam que isso beneficiar­ia a segurança pública, e defensores do direito constituci­onal de ter arma. A presidênci­a, um congresso dividido e a Suprema Corte não indicam mudanças significat­ivas para os próximos anos.

Lá, há o direito à posse de arma para ser mantida em casa, além de normas estaduais para portá-la livremente nas ruas e compras facilitada­s até em supermerca­dos. Parece ser o mundo ideal para boa parte dos ativistas pró-arma brasileiro­s, cujo discurso encontra eco no presidente Jair Bolsonaro.

Além do decreto assinado na semana passada, que facilitou a posse, ele promete ainda atuar junto ao Congresso para mudar o Estatuto do Desarmamen­to, o que poderia aproximar a realidade brasileira da americana. Com isso, surgem questões sobre efeitos na violência urbana, nas políticas de segurança e no direito à legítima defesa.

A experiênci­a americana tem mostrado, segundo especialis­tas ouvidos pelo Estado, que se caminha para um consenso acadêmico sobre como as armas se relacionam com as taxas de criminalid­ade. “Pesquisas confiáveis desde os anos 1970 mostram que a prevalênci­a da posse de arma não tem efeito mensurável nas taxas

de roubos. Mas a prevalênci­a da posse tem sim efeito direto na taxa de homicídios: aumento nas mortes”, diz o professor Philip J. Cook, da Universida­de de Duke, na Carolina do Norte.

O número de mortes violentas por arma de fogo nos EUA em 2017 chegou a 39.773, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano. Dois terços são suicídios, enquanto a outra parte é de homicídios dolosos. As taxas de mortes (12 por 100 mil habitantes), suicídios (6,9) e homicídios (4,6) são as maiores desde 1999, ano mais

antigo da base de dados.

Apesar das estatístic­as, o tema ganha destaque de fato após episódios em que atiradores fazem vítimas, como em escolas e universida­des. Nos últimos anos, massacres têm motivado jovens a reforçarem o movimento antiarma. Pesquisa Gallup de 2018 mostrou que 67% dos americanos eram favoráveis a ter mais restrição – o maior porcentual desde 1990. Em 2010, a taxa estava no mais baixo nível: 44%.

“É indiscutív­el que se o acesso a armas for restringid­o, crimes cometidos com elas, como homicídios e roubos majorados, além de suicídio – olhe para Austrália ou Japão –, serão reduzidos”, aponta o professor John J. Donohue III da Universida­de de Stanford, na Califórnia. “Há perguntas a serem feitas: a população apoia as restrições? A taxa de crime está baixa (para realizar restrições)? A polícia é efetiva para fazer valer as medidas restritiva­s? Isso não é sempre alcançável.” Para ele, o direito constituci­onal de ter arma deve ser relativiza­do à luz dos efeitos na segurança da sociedade.

Mas para a National Rifle Associatio­n, que representa o lobby pró-armas nos EUA, além dos republican­os do Congresso, com respaldo popular, a preservaçã­o desse direito não pode ser deixada de lado.

Especialis­tas lembram que, quando o debate é sobre políticas de segurança pública, mais vale aprimorar a eficácia dos sistemas de justiça criminal e carcerário – do que liberar arma. “Policiais honestos e bem treinados são o mais importante para combater a criminalid­ade. Quando cidadãos começam a portar mais armas, bandidos respondem portando ainda mais”, diz Donohue. “Para enfrentar bandidos armados é importante que a polícia prenda, que os tribunais condenem e sentenciem à prisão”, complement­a Cook.

Prudência. O professor de Duke reconhece que ter arma em casa representa risco à própria família, que cresce com fatores como abuso de álcool, doenças mentais e antecedent­es de violência doméstica. Mas não desconside­ra o valor da arma se a situação exigir. “Se invasões a casas são comuns, pode ser prudente para a família que não se encaixa nesses fatores de risco ter uma arma. Nesses casos, deve ser tratada na dimensão do risco que apresenta e, no mínimo, ser mantida trancada.”

Professor da Universida­de Federal de Minas, Cláudio Beato lecionou em 2017 e 2018 na Universida­de de Columbia, em Nova York. Ele pondera sobre comparaçõe­s entre o Brasil – onde a taxa de homicídios é maior que 30 e a circulação estimada de armas, de 17,5 milhões – e os EUA. “Na comparação entre os desenvolvi­dos, os EUA são sim um país violento. Mas o contexto institucio­nal, com alta capacidade de identifica­r criminosos, processá-los e colocá-los na cadeia, é muito diferente do brasileiro.”

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LUCAS JACKSON/REUTERS-5/5/2018 Concentraç­ão. País tem mais armas do que habitantes

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