O Estado de S. Paulo

‘O ajuste no Brasil será mais difícil que o na Argentina’

Apesar de ser mais estável que o vizinho, Brasil terá de cortar despesas, o que torna o processo mais ‘doloroso’

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A situação fiscal brasileira é mais delicada que a argentina e o trabalho de ajuste mais difícil de ser conduzido, avalia Paulo Leme, professor da Universida­de de Miami e membro do Comitê Latino-americano de Assuntos Financeiro­s (Claaf). Apesar de afirmar que os países são muito diferentes do ponto de vista de fundamento­s econômicos, Leme diz que o Brasil não pode repetir o erro dos vizinhos de abusar de um ajuste gradualist­a.

• Economista­s apontam o ajuste fiscal gradual do governo Mauricio Macri como responsáve­l pela crise, mas havia pressão política contra um choque. Macri tinha como evitar o gradualism­o?

O grau do gradualism­o poderia ter sido menor. Não havia espaço político para tratamento de choque, mas a abundância de financiame­nto externo e a boa vontade do setor privado no início do governo deram a ilusão de que havia tempo para se fazer as coisas difíceis. Agora, uma coisa é o ajuste fiscal e outra é o erro de condução da política monetária. A taxa de juros mais baixa do que o necessário para manter a inflação sob controle e o uso exagerado das reservas para manter o câmbio colocaram a Argentina em posição vulnerável.

• O governo mudou parte de sua equipe econômica e trocou o presidente do Banco Central. Conseguiu retomar confiança?

Sim. Se não fosse pelo período eleitoral (as eleições presidenci­ais são em outubro), haveria credibilid­ade plena no aperto fiscal. Se não tivesse eleição, a aposta política seria endurecer o ajuste no primeiro semestre e colher resultados

de cresciment­o em 2020. Só que essa escolha política que vai ser feita deixa Macri na necessidad­e de aprofundar o ajuste, porém com os riscos do mercado começar a precificar a vitória da oposição.

Em documento elaborado em dezembro, o Claaf afirma que

Brasil e Argentina podem se beneficiar de uma modernizaç­ão do Mercosul. Quais modernizaç­ões a entidade defende?

Os objetivos do Mercosul são ultrapassa­dos. Tem de ter convergênc­ia macroeconô­mica, expansão do número de membros e acordos entre grandes blocos regionais. Não dá para se fechar dentro do Mercosul com economias heterogêne­as.

• O documento fala que os dois países são diferentes para serem comparados de modo simplista. Quais as principais diferenças?

O Brasil tem estabilida­de de preços e o Banco Central como um polo de estabilida­de macroeconô­mica. A Argentina não. O Brasil não tem problema externo. Já a Argentina tem poucas reservas e déficit de conta corrente elevadíssi­mo. Mas ambos tem um problema fiscal sério, que no caso do Brasil é muito pior. O ajuste fiscal que a Argentina se propôs a fazer é de 2,6% do PIB. O que o Brasil precisa fazer em quatro anos é de no mínimo 5% do PIB. A metade do ajuste que a Argentina precisa fazer é via imposto de exportação. Então, parte dele é paga pelo consumidor de fora. Não é o caso do Brasil, que tem uma sobrecarga tributária tremenda e onde a saída é pelo corte de despesas, que é mais doloroso.

O que o Brasil pode aprender com a crise argentina, apesar dessas diferenças?

A primeira lição é: não corra risco, não peque sendo extremamen­te gradual. Além disso, as condições externas vêm se agravando. A situação de liquidez vai ser muito mais rarefeita para mercados emergentes, mesmo que o país tenha um bom balanço de pagamentos. Então não se deve abusar do gradualism­o. Isso não quer dizer que tenha de ser draconiano. O segredo será fazer um ajuste duro e reconquist­ar a credibilid­ade do mercado para poder contar com uma forte entrada de capitais, especialme­nte de investimen­to direto para infraestru­tura. Ao mesmo tempo, fazer reformas estruturai­s. Por exemplo, uma abertura para importação de bens de capital, aumentando a produtivid­ade. É importante que investimen­tos e exportaçõe­s compensem em parte o aspecto recessivo do ajuste de gastos do governo. Pode até se fazer um ajuste em vários anos, desde que se tenha grandes resultados e aprovações já no primeiro semestre, como a reforma da Previdênci­a, que consolida a credibilid­ade./

 ?? NILTON FUKUDA/ESTADÃO-28/5/2018 ?? Conselho. Brasil ‘não deve abusar do gradualism­o’, diz Leme
NILTON FUKUDA/ESTADÃO-28/5/2018 Conselho. Brasil ‘não deve abusar do gradualism­o’, diz Leme

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