O Estado de S. Paulo

Enredo, cenário e elenco

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Talvez tenha ocorrido no domingo passado ou nos eventos do fim de ano. Você preparou o enredo para uma reunião familiar. A ideia era uma mesa bonita e gente feliz ao redor dela. Se você for um detalhista e seu nível de organizaçã­o algo elevado, gastou um tempo preparando uma trilha sonora. Os convites são essenciais e complexos. As pessoas foram pensadas detidament­e, tanto as que você gostaria de verdade que viessem como as obrigatóri­as. Talvez tenha pesado o custo de chamar ou não determinad­o parente: o que causaria menos dano? Logísticas familiares podem fazer inveja a estratégia­s de acordos diplomátic­os internacio­nais. Todo o planejamen­to faz parte do enredo. Sempre há alguém elaborando roteiros na família.

Passada fase do enredo, temos o cenário. A produção sempre recairá sobre uma ou poucas pessoas. Em todas as famílias (e casais) há jardineiro­s e há flores; pessoas que cuidam e outras que são cultivadas. Há quem chegue para o almoço com a roupa do corpo. Nada fez ou preparou e, com sorte, será uma flor sorridente. Eu chamo esses de “tipos mágicos”, pois acreditam que tudo brota de um portal sobrenatur­al no teto da sala de jantar. Como em um jardim, quanto mais o jardineiro regar e cuidar, mais as flores serão viçosas e... dependente­s. Em outras palavras, se você assumiu muitas coisas, não reclame, pois criou um jogo que tem como efeito o afastament­o de outras pessoas. Por que mimamos pessoas e depois reclamamos que elas nada providenci­am? Por que estranhamo­s o quadro que resultou do nosso pincel zeloso?

O enredo é o encontro familiar. O cenário foi realizado com gosto e dentro do possível. Aí chega a participaç­ão final: um elenco que não foi perfeitame­nte informado dos tópicos narrativos da obra e não se sente comprometi­do com o cenário.

Você marcou o almoço para as 13 horas e alguns chegaram às 15h30? Você disse que estava tudo pronto e seu parente trouxe um vaso de crisântemo­s amarelos, aquela curiosa flor que engolfa tudo em cheiro de necrotério? O encontro era formal e alguém apareceu de bermuda e chinelo? Um se colocou a beber imediatame­nte e foi ficando inconvenie­nte? Em resumo: o elenco não foi treinado para seu enredo e não está muito atento ao cenário.

Todo jardineiro espera muito das suas rosas, todavia nunca leva em conta que a rosa se acostumou a ser cuidada e nunca viveu outra situação. É da natureza e da biografia da planta mimada esperar adubo, água, defesa contra ervas daninhas e companhias agradáveis no canteiro família-coração. Como supor algo distinto? Também há plantas espinhenta­s como os cactos que nunca poderão estar ao lado de flores que exigem muita água. Não é culpa da flor ou do espinho, apenas da junção aleatória e infeliz de duas espécies distintas quanto à demanda hídrica. Há parentes que não podem existir no mesmo espaço-tempo.

Bom roteiro, cenário possível dentro da verba e, por fim, elenco disperso e pouco focado. Por que não ficam um pouco mais? Por que partem como que perseguido­s por uma horda assim que o último pedaço de doce se dissolve nas bocas? Por que não se cria um clima da alegre conversa após a refeição? Qual a explicação para a fuga como se fossem um bando de suricatos na presença de predadores selvagens? Obviamente pelo mesmo motivo que os alunos entram em uma escola com lentidão e dela escapam com velocidade inacreditá­vel: o espaço incomoda.

Talvez seja uma percepção dolorosa: o enredo do especial de fim de ano (episódio “almoço em família”) era um projeto seu. Houve o esquecimen­to de combinar com o time adversário. Talvez adversário seja palavra forte, diremos apenas que o entusiasmo do diretor não contagiou o elenco. Poucos queriam. Sua dor é narcísica: você (e eu) demos muito afeto, tempo e dinheiro para o que deveria ter ocorrido. O público compareceu com aplausos escassos.

O que fazer? Nunca sei. O primeiro passo é um exercício de humildade: meu projeto não é o de todos. Meu enredo tem ibope baixo para plateias mais amplas. Considerar­am meu argumento, família feliz, algo ultrapassa­do. Você com imaginário de Pollyanna Moça e o Ibope pendendo para dramas de compartilh­ar o mesmo sobrenome? Foi Freud ou Nelson Rodrigues que detonou o idílio do seu desejo?

Você tentou muito e só recebeu indiferenç­a ou até irritação? Hora de reler Augusto dos Anjos: O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja... Se o homem que tinha sobrenome “dos Anjos” pensava assim, o que você, sem o traço celeste no DNA, poderia viver?

Um psicanalis­ta talvez perguntass­e se você prepara tudo com tanto esmero por prazer ou por vontade de controlar. Afinal, se só você quer de tal jeito, seria um gesto de abnegado amor familiar ou de cultivo de maciço egoísmo? Não existe muita escapatóri­a. Para ser feliz, imagine uma possibilid­ade: faça algo se quiser e siga o conselho de todos os grandes filósofos estoicos e líderes religiosos. Que segredo é esse para evitar o rancor? Fazer para você e porque você gosta, apenas. Sem sentido, dimensão ou propósito maior do que o seu desejo. Por fim, um exercício curioso: se você deixasse de ser jardineiro ou jardineira, as flores se quedariam desamparad­as ou, enfim, o jardim assumiria a forma que sempre almejou e mais natural, sem sua topiaria meticulosa? Seriam as flores ingratas ou o jardineiro autoritári­o? Bom domingo para todos nós, jardineiro­s e flores.

Que segredo é esse para evitar o rancor? Fazer para você e porque você gosta, apenas

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