O Estado de S. Paulo

Novas formas de trabalho causam atritos entre condôminos

Home office é assunto recorrente em prédios; para síndicos, bastariam bom senso e diálogo para evitar problemas

- Érika Motoda

Faz dois anos que a engenheira civil Kelly Ramos de Lima, de 44 anos, dorme no emprego e trabalha em casa. Após ser desligada da construtor­a onde trabalhava havia mais de duas décadas, Kelly abriu uma empresa de consultori­a em engenharia e inspeção predial no próprio apartament­o, em Mirandópol­is, na zona sul, onde mora há cinco anos. “É só atravessar a porta da suíte que já estou no trabalho”, brinca.

O closet virou um escritório, e a sala de jantar é usada para reuniões. A engenheira até contratou uma assistente, que trabalha de segunda a sexta e tem cadastro na portaria como funcionári­a. Assim, o apartament­o de 120 m2 adquiriu caracterís­ticas de estabeleci­mento comercial, o que tecnicamen­te é uma infração segundo o regulament­o interno do condomínio, de 1988. A questão é que muitos regulament­os pela cidade foram redigidos há anos – antes da populariza­ção da internet e do home office – e não foi atualizada.

Os vizinhos de Kelly não se incomodam com o apartament­o-escritório dela; na verdade, eles também exercem suas profissões no próprio apartament­o ou alugam cômodos vazios. Todos buscam diminuir seus gastos – a engenheira calcula uma economia de R$ 3 mil por mês, além da economia do tempo que passaria no trânsito.

Não há lei que dite as regras do home office, e os condomínio­s se ajustam para que o entra e sai não atrapalhe a rotina do prédio. Não foi o caso de um condomínio em São Bernardo do Campo, onde o dono de um apartament­o montou um call center com 20 funcionári­os, conta o síndico profission­al do edifício, Orlando José da Silva. O proprietár­io nem morava lá.

O entra e sai dos operadores, uniformiza­dos, não demorou a causar transtorno­s nas áreas comuns do prédio. O proprietár­io foi notificado duas vezes e recebeu uma multa, até que o apartament­o foi colocado à venda. A situação durou seis meses.

Se o call center tivesse sido instalado no condomínio onde

a síndica profission­al Simone Momjian de Menezes trabalha, na Vila Mariana, o caso seria considerad­o infração grave. Lá, o proprietár­io nem é notificado: recebe uma multa de 60% da taxa condominia­l. Em caso de reincidênc­ia, a multa vai para 80% e assim até atingir 120%. Depois, o valor é dobrado.

Caso de polícia. Quando o regulament­o interno não dá conta de resolver um problema de vizinhança, há casos em que os moradores recorrem à polícia. Barulho em festas é um deles. Segundo a Lei de Contravenç­ões Penais, de 1941, perturbar o trabalho ou o sossego alheios é passível de prisão de 15 dias a

três meses, ou pagamento de multa. “Mas a polícia pode ir ao local para recomendar que o morador abaixe o volume. Não pode prender ninguém, a não ser em casos de briga ou consumo de drogas”, segundo Simone foi informada por agentes.

Também síndica no prédio onde mora, em Perdizes, ela se lembra de uma reclamação registrada no livro de ocorrência­s na portaria. Era uma suposta “barulheira” depois do horário permitido. Ao apurar o caso por meio de vídeos de segurança, a síndica viu que era só funcionári­os do bufê da festa se preparando para ir embora. “Tem gente que se incomoda com tudo.”

A síndica conta que ajuda a

resolver problemas mesmo fora das áreas comuns. Certa vez duas moradoras queriam pintar as paredes – de cores diferentes – do hall social que dividiam. Quando uma delas saiu para viajar, a outra aproveitou para pintar da cor que queria.

A situação estava em vias de parar na Justiça, mas Simone argumentou: “O dinheiro que vocês vão gastar com advogado pode ser usado na reforma”. No final das contas, contratara­m um arquiteto que não pintou nem de branco nem de amarelo. Usou espelhos. “Faltam diálogo e bom senso”, concluiu a síndica.

TEM GENTE QUE SE INCOMODA COM TUDO. FALTAM DIÁLOGO E BOM SENSO Simone Momjian SÍNDICA

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Em casa. Kelly Ramos e sua funcionári­a, em escritório que montou em casa; com ele, economiza R$ 3 mil por mês

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