O Estado de S. Paulo

A CENSURA EM DEBATE

- Antonio Gonçalves Filho

No domingo passado, 13, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) decretou o fim da exposição Literatura Exposta um dia antes do previsto, vetando as performanc­es que encerraria­m a mostra, em cartaz na Casa França-Brasil desde dezembro de 2018. Em resposta ao ato governamen­tal, o curador da exposição, Álvaro Figueiredo, denunciou o fechamento como censura à performanc­e do coletivo És uma Maluca, uma crítica à ditadura militar cujo teor, segundo ele, teria sido autorizado pela direção da casa. Já o governador Witzel defendeu o contrário. Justificou o fechamento alegando que as performanc­es não constavam do contrato com a Secretaria Estadual de Cultura do Rio.

A performanc­e final da exposição seria uma sequência da instalação montada pelo coletivo, A Voz do Ralo é a Voz de Deus, em que centenas de baratas de plástico passeiam sobre um bueiro do qual sairia a voz do presidente Jair Bolsonaro – trocada por uma receita de bolo, após a proibição do uso de seus discursos pelo diretor da Casa França-Brasil, Jesus Chediak. Em tempo: a instalação foi inspirada por um conto de autoria de Rodrigo Santos, que narra a história de uma mulher torturada durante o regime militar com baratas introduzid­as em sua vagina.

Quebra de contrato ou simples censura? O coletivo És uma Maluca, da zona Norte do Rio, publicou uma nota nas redes sociais em que afirma ter sido censura. Vale lembrar que episódios semelhante­s foram registrado­s no Brasil recentemen­te e comentados no livro Arte, Censura, Liberdade Reflexões à Luz do Presente, organizado por Luísa Duarte, em que curadores como Luiz Camillo Osório e historiado­res como Lilia Moritz Schwarcz analisam as tentativas de vetar performanc­es como a do coletivo És uma Maluca e do bailarino Wagner Schwartz, La Bête, apresentad­a no 35.º Panorama

da Arte Brasileira do MAM-SP, em 2017, também o ano em que o Santander Cultural de Porto Alegre determinou o fechamento da mostra Queermuseu - Cartografi­as da Diferença na Arte Brasileira, após protestos nas redes sociais de grupos que acusaram os organizado­res da exposição de “incitar a pedofilia, a zoofilia e a blasfêmia”.

Políticos e grupos conservado­res, como o Movimento Brasil Livre, levaram os curadores da Queermuseu, Gaudêncio Fidelis e Luiz Camillo Osório, a prestar depoimento na CPI dos Maus-Tratos Infantis do Senado Federal. O performer Wagner Schwartz foi chamado de psicopata e pedófilo por ter uma menina menor interagido com ele na performanc­e La Bête, em que o ator aparece nu manipuland­o um origami. O episódio é comentado na análise da curadora e crítica Daniela Labra no livro organizado por Luísa Duarte.

Labra diz que reagir com censura a performanc­es como La Bête, sem apelo erótico ou à pedofilia, “denota falta de informação e má-fé, ressuscita­ndo polêmicas datadas com roupagem nova”. Lembra que nada disso, afinal, é novo. Afinal, há exatamente 60 anos o artista de vanguarda norte-americano Allan Kaprow (1927-2006) criou o happening – ação artística coletiva que convidava espectador­es à participaç­ão e culminava com um ou mais corpos despidos. Naquele momento, conclui Labra, o ato de se despir “ganhava contornos políticos, de crítica e deboche contra sociedades conservado­ras”.

No Brasil, artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape fizeram igualmente ousadas propostas estéticas com o uso do corpo que convidavam o público a participar, lembra a curadora. Isso em plena ditadura. É convenient­e lembrar que o artista Antonio Manuel, em 1970, fez uma performanc­e em que seu corpo nu era a própria obra, no Museu de Arte Moderna do Rio.

Alguns culpam o avanço da extrema direita no mundo pelo recrudesci­mento da censura em tempos democrátic­os. A curadora Marisa Flórido Cesar, no livro, diz que “Trump e similares parecem a caricatura midiática” dos líderes populistas mitificado­s do passado (Hitler, Mussolini e companhia), mas são, na verdade, “a culminação e a personific­ação do ódio de classe, da xenofobia, do racismo e do nacionalis­mo que refluem de volta, como o retorno do recalcado”. A criminaliz­ação das artes que vem acontecend­o no Brasil, conclui a doutora em Artes Visuais, não se deve apenas ao conservado­rismo moral, mas porque ela é “capaz de abrir fendas para que se anunciem diferentes vozes”. Isso explica porque os poderosos odeiam a alteridade. Querem um mundo homogêneo, uniforme. Tudo o que a arte justamente não oferece.

“Acho que essa onda conservado­ra existe porque existe, também, uma onda libertária muito forte. Muitos direitos foram conquistad­os nas últimas décadas, impensávei­s para as gerações anteriores. Não podemos assistir passivos a essa regressão”, diz a pintora Adriana Varejão na conclusão do livro. E cumpriu o que prometeu. Reagiu com outros artistas e reabriu a exposição Queermuseu, da qual participou, no Parque Laje, em julho do ano passado.

Curadora Luísa Duarte organiza livro que traz entrevista­s e ensaios críticos sobre o veto de conservado­res a manifestaç­ões artísticas de teor político

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CAROLINE MORAES Nu polêmico. Por causa de sua performanc­e ‘La Bête’, em 2017, no MAM-SP, Wagner Schwartz foi acusado de ‘pedófilo’ e ‘psicopata’
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ARTE, CENSURA, LIBERDADEO­RGANIZAÇÃO: LUISA DUARTE EDITORA:COBOGÓ 264 PÁGINAS R$ 46

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