O Estado de S. Paulo

Nego Gallo e o rap de Fortaleza

‘Veterano’ é seu novo trabalho, que está nas plataforma­s digitais

- Guilherme Sobota

Em Fortaleza, um “veterano” pode ser tão jovem quanto um rapaz de 12 anos – é o que explica, por telefone, Carlos Gallo (o Nego Gallo), rapper que, com o grupo Costa a Costa, marcou época no rap nacional com a mixtape (compilação) Dinheiro Sexo Drogas e Violência de Costa a Costa, em 2007. Agora, nas primeiras semanas de 2019, Gallo lançou o primeiro grande projeto do gênero no Brasil com a mixtape Veterano, já disponível nas plataforma­s digitais.

“É uma gíria da cidade. O veterano já está nessa guerra, que não é dele, ele nasceu ali. É como se estivesse na Síria, você nasce no meio de um negócio e vem lutando. Tenho 44 anos, mas ‘veterano’ não tem a ver com a idade. A cidade ainda tem que melhorar muito.”

A mixtape, na verdade, é um trabalho de mais de um ano, mas calhou de ser lançada nesse momento (a sexta-feira marcou o primeiro dia do ano que Fortaleza não registrou ocorrência­s ligadas aos ataques do crime organizado). “As pessoas receberam (o disco) como um reflexo dessa situação. Nesse sentido, fiquei feliz de ter transporta­do essa reflexão durante alguns minutos.”

O disco nasceu e fala diretament­e sobre as ruas da capital do Ceará. Gallo conta que viveu na comunidade das Goiabeiras, na costa oeste da cidade, por oito meses, onde trabalhou na realização do disco com o produtor Coro MC (depois, por intermédio de seu amigo e parceiro de Costa a Costa, Don L, a produção foi finalizada em São Paulo por Leo Grijó). “Tinha a ideia de fazer um disco para Fortaleza, com a música que pairava por aqui”, diz, citando o reggae (a marca mais forte do disco), o brega, o passinho e a cumbia villera, ritmo criado nas quebradas argentinas. O nome de Aldair Playboy – o jovem criador do hit Amor Falso e expoente do “batidão de João Pessoa”, ritmo que mistura forró, reggae e funk – aparece mais de uma vez durante a entrevista.

Sobre o reggae nos beats, Gallo explica que Fortaleza tem uma ligação forte com o ritmo. “É um lugar para a juventude se expressar e se encontrar nas praças, é uma válvula de escape para fugir da atuação do crime, de um lado, e da polícia opressora, do outro.” Bezerra da Silva é outra de suas influência­s no álbum.

“Eu não sei o que é hype”, diz Gallo. “Fiz esse disco numa casa dentro da favela, pessoas morreram em volta dela, não sabia se o público ia querer ouvir.” Ele conta que enviou as músicas e pediu a opinião de Don L. “Ele é sempre muito assertivo. Mas aí sumiu e uns dias depois disse: ‘está na mão do Leo Grijó’. Eu falei: ‘não, mano, você é doido, é?’ Mas aí foi acontecend­o, naturalmen­te”, relembra.

O disco tem 9 faixas, 2 interlúdio­s e 31 minutos. No Meu Nome é um diálogo entre Gallo e Don L (uma das marcas do Costa a Costa), e introduz o clima num beat de trap (estilo instrument­al) suave com guitarras (“Tipo minhas área mata que nem Bagdá / Na quarta eu tive sorte, saca? / Vários outros não”, canta Gallo), e Don L complement­a na sua cadência caracterís­tica com uma história típica de um garoto no crime que acabou por ouvir a música dele. “Pensei que aquela última rima / Que embalou o irmão / Naquela última tarde/ Num era minha, era da minha cidade / Onde os moleque corre o dobro pra viver a metade.”

A transição perfeita para a próxima faixa, O Bagui Virou, coroa o clima mais celebrador da canção, cujo título é um aviso. Em Onde Há Fogo Há Fumaça, o reggae toma conta dos beats e, bem como na próxima faixa, Downtown, Gallo conta histórias das ruas, crimes, mas também causos, reflexões e contos de amor (que volta na love song do disco, Dois Cofres Uma Porta). DVD é um pancadão feito por encomenda (Gallo conta que se sensibiliz­ou com o pedido feito por telefone por um presidiári­o), e Acima de Nós Só o Justo, com participaç­ões de DaGanja, Galf AC e Mc Mah, termina o disco com o tom de desafio lá em cima.

“Eu moro numa região onde a música é feita por se gostar de fazer. Nunca tive a pretensão de ficar rico ou ganhar dinheiro com rap. Foi o meu veículo de chegar às pessoas, tocando o coração, tentando mostrar outros caminhos além daqueles que encontramo­s nas esquinas do bairro”, diz Gallo.

O rapper diz que o hip hop foi a melhor coisa que aconteceu na sua vida – a ética de abrir caminhos, construir pontes e estender a mão, marca de nascença da cultura hip hop, Gallo aplicou em trabalhos sociais para as secretaria­s de Fortaleza e do Ceará, para onde trabalhou durante a última década, com pessoas em situação de vulnerabil­idade.

“Independen­te da região do Brasil e da classe social que desenvolve a música do hip hop, temos que entender que existe um caminho, juntos, enquanto todo mundo está aqui, vivos”, avisa o veterano.

Eu não sei o que é hype. Fiz esse disco numa casa dentro da favela, não sabia se alguém ia querer ouvir”

Nunca tive a pretensão de ficar rico ou ganhar dinheiro com rap. Foi o meu veículo de chegar às pessoas”

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ANTONELLO VENERI Produção. Fotos do disco são do artista italiano Antonello Veneri
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‘Veterano’Independen­te

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