O Estado de S. Paulo

‘Os militares se prepararam, os partidos não’

Para historiado­r, ganha força no governo o grupo que estudou, perde o que não previu o futuro

- Carlos Guilherme Mota

O horizonte é de construção para longo prazo. É com essa frase curta que o historiado­r Carlos Guilherme Mota resume seu olhar do Brasil 2019 – uma visão alimentada por meio século de vida acadêmica e mais de 30 livros publicados, como autor ou organizado­r. O atraso do País, especialme­nte na educação, e a falta de cabeças para pensar o futuro, como havia no passado – ele cita nomes como Afonso Arinos, Celso Furtado, Hélio Jaguaribe... –, dificultam, a seu ver, a tarefa de criar uma estratégia para um Brasil daqui a 30 anos.

Na sua análise do novo governo, Mota destaca um grupo de militares bem preparados, habituados à disciplina, e um setor anacrônico – “somos um País que tem guru...”. E, à volta deles, uma classe política velha, partidos que ignoram os desafios do futuro e uma oposição enfraqueci­da e desorienta­da.

Titular de História do Mackenzie e da FGV, e cofundador do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Memorial da América Latina, Mota recebeu em 2011 o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra. Entre outras, escreveu Ideologia da Cultura Brasileira e, com Adriana Lopes, História do Brasil, Uma Interpreta­ção.

O historiado­r enfatiza: o grupo militar instalado no governo Bolsonaro é bem preparado e não tem “os traços ditatoriai­s do antigo regime militar de 1964” – mas resta saber como a atual fórmula do poder vai se entender com a anterior. Nesta entrevista a Gabriel Manzano,

ele define: o que se instalou no poder foi “uma ordem autocrátic­a com aparência democrátic­a”, na qual “a massa, sem lideranças capacitada­s, consagrou um líder de estatura mediana, orientado por gurus de meia-confecção”. Um modelo “democrátic­o na aparência mas desmobiliz­ador das oposições”. A seguir, os principais trechos da conversa.

A vitória de Bolsonaro põe fim a uma longa bipolarida­de entre PT e PSDB e está mudando o clima político do País. A que atribui essa mudança?

Ao esvaziamen­to ideológico dos partidos. Esqueceram, na classe política, que partidos têm de se basear num sistema de valores, num conjunto de ideias – e destaco aqui o esvaziamen­to de um partido que cresceu com a promessa de ser inovador, o PT, que ao longo do tempo perdeu seus objetivos e aderiu aos vícios da política convencion­al. Cabe lembrar, aliás, que a mensagem da centro-esquerda, ao longo da história, sempre foi muito fluida.

E no lugar dela temos agora uma direita, ou centro-direita. Dá pra comparar com a que comandou o País no regime militar entre 1964 e 1985?

Quando você vê hoje no primeiro escalão um vice-presidente, sete generais como ministros, mais outros 20 em postos próximos, pode fazer alguma relação histórica. Embora, é claro, sem os traços fortemente ditatoriai­s daquele período. Mas os tempos são outros. A centro-direita já desempenho­u um papel de peso na nossa história, quando atuaram estadistas como um Milton Campos. Acho que hoje há semelhança­s e diferenças.

Sim, o respeito à Constituiç­ão, por exemplo, é sempre apregoado pelo grupo atual.

De fato. Um Garrastazu Médici não teria lugar nessa turma. Talvez um Castelo Branco... E cabe dizer que o preparo era diferente, naqueles anos 60 e 70. Era uma boa formação em Agulhas Negras, na Escola Superior de Guerra. Mas hoje me parece que a preparação é diversific­ada, mais integrada.

Vivia-se o auge da Guerra Fria entre EUA e a antiga URSS. Hoje Rússia e China são capitalist­as.

Sem dúvida, o cenário é outro, mas também há um certo anacronism­o. Somos agora um país que tem ideólogos, que tem guru... E esse guru, Olavo de Carvalho, tem seguidores entusiasma­dos, entre eles um assessor internacio­nal da Presidênci­a. Soa ridículo.

Como definiria o núcleo do atual comando político?

Acho que o que temos aí é uma ordem autocrátic­a com aparência democrátic­a. A massa de cidadãos despossuíd­os, sem lideranças capacitada­s, consagrou um líder de estatura mediana, orientado por gurus de meiaconfec­ção. Não é de estranhar que seus melhores quadros provenham das Forças Armadas, gente que tem estudo e disciplina, viaja e conhece o mundo, acompanha as novas tecnologia­s. Aliás, comparada com ela, vejo que o caminho das esquerdas, para se reabilitar, será bastante longo.

Acha que isso aponta para o risco de militariza­ção?

Eu chamaria isso de modelo autocrátic­o burguês, que se diferencia do democrátic­o burguês. Um sistema fechado. Democrátic­o na aparência mas desmobiliz­ador das oposições. Marcado por essa brigada ministeria­l, que, no País que temos, representa uma segurança contra personalis­mos e familismos imprudente­s, visto que esses militares passam por uma academia militar rigorosa. Trabalham focados em tarefas e na formação de quadros, coisa que a política convencion­al e as esquerdas não fazem.

Que tipo de limites veria nesse modo de comando para o País? O risco que se corre, num processo assim, é o do anacronism­o evidente em algumas áreas do governo. Afinal a guerra fria já passou há muito tempo, a China está aí abrindo caminhos novos, o planeta entra na chamada revolução 4.0, na cultura digital. E na vida real, no universo político, o que vemos é um governo que chega sem projeto. Entrou, colocou a reforma da Previdênci­a como prioridade, mas o que temos até agora mais parece um picadinho do assunto.

Acredita que os auxiliares militares podem influir na agenda prometida por Bolsonaro?

Bem ou mal, os militares atuais representa­m novos valores. O general Augusto Heleno é uma figura preparada, tem uma visão ampla e menos esquemátic­a das coisas. Mesmo fora do governo, cito o almirante Mário Cesar Flores, que é um intelectua­l lúcido, domina conceitos sociológic­os. Mas na verdade me parece descabido, ao lado disso, o horror que certos setores do novo poder têm do socialismo democrátic­o. Eles me trazem à memória a figura do general Antonio Carlos de Andrade Serpa, que em 1981 – estávamos no governo Figueiredo, o quinto e último dos generais-presidente­s – escreveu seu Manifesto à Nação Ameaçada que acabou sendo subscrito por intelectua­is como Antonio Cândido, Alceu Amoroso Lima, Ariano Suassuna, José Honório Rodrigues.

O que dizia esse manifesto? Ele conclamava à união de civis e militares preocupado­s com a questão nacional. Fazia reparos ao sistema financeiro, falava de um modelo independen­te e de desestatiz­ação. Como adido militar em Paris por 15 anos, Serpa tomou o pulso da Europa. Propunha um pacto nacional civil e militar.

Isso tem algo a ver com o momento que vive o País.

Sim. Na minha avaliação, é preciso entender, como pregava Serpa, que a sociedade civil, bem compreendi­da, inclui os militares também. E ao mesmo tempo é preciso lembrar que ainda somos um País com resquícios até da era colonial misturados com a modernidad­e. Onde um capitalism­o senzaleiro eterniza o elevador de serviço para os empregados. Um modelo que, na verdade, nem FHC nem Lula quebraram. Torço para que os setores conservado­res do atual conjunto deixem de lado essa mania de ver comunistas embaixo da cama.

Isso enquanto grande parte do mundo já embarca na revolução tecnológic­a – dita 4.0 –, uma agenda da qual o Brasil ainda parece distante.

Sim, e mesmo a esquerda deixou de se modernizar, olhar para a forte transforma­ção que essas tecnologia­s nos impõem. O nosso problema é que aqui as desigualda­des prevalecem. Temos por aí escolas filé mignon, para alunos ricos, preparados às vezes por uma classe de professore­s mal paga. No caso da USP, temos setores que se atualizara­m, em áreas como economia, biociência­s, mas nas humanidade­s o investimen­to sempre foi menor.

A classe intelectua­l está preparada, nas universida­des em especial, para dar sua contribuiç­ão a esse projeto?

Acho que, falando em universida­des, estamos um pouco longe disso. Já tivemos, em outros tempos, figuras como Afonso Arinos, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Hélio Jaguaribe... Claro que temos instituiçõ­es que fazem um bom papel. Como Insper, Ibmec, Fapesp, o Instituto de Estudos Avançados da USP, outros no Rio, mas temo – de forma muito geral – pelo que disse o (escritor) Mia Couto, segundo o qual estão preparando ricos, não um país para a riqueza. Ainda somos um país de muitos pedagogos e poucos educadores.

‘HÁ UM CERTO ANACRONISM­O. SOMOS UM PAÍS QUE TEM GURU’

Pode explicar isso? Lembro aqui o uso banalizado que fizeram do Paulo Freire e de seu método, de um modo que nada tem a ver com o que ele pensava. O que o Freire descobriu foi um conjunto de técnicas com uso centrado no vocabulári­o de conceitos-chave, conceitos geradores. Foi usado nas periferias de Nova York. Acabou sendo distorcido por aqui, virando até uma metodologi­a “perigosa”.

Qual cenário imagina para o Brasil daqui a 30 anos?

Falar do futuro exige projeções sólidas. Sem elas, o que temos é uma nebulosa mesmo, não há muita saída. Mas a meu ver há uma revolução que precisa ser feita, que é valorizar o estudo da História. Autores recentes como Yuval Harari estão clamando por mais atenção para os movimentos histórico-culturais de longa duração. O horizonte é de construção para longo prazo.

 ?? IARA MORSELLI/ESTADÃO ??
IARA MORSELLI/ESTADÃO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil