O Estado de S. Paulo

Curtir, 10 anos

Botão que nasceu com o Facebook mudou a internet.

- Bruno Romani COLABOROU GIOVANNA WOLF

No princípio, as redes sociais eram o verbo. Sentimento­s, desejos e teorias eram expressado­s – e respondido­s – por texto. A natureza da internet passou a ser diferente quando, no dia 9 de fevereiro de 2009, o Facebook propôs uma singela questão aos seus membros: “Curtiu?”. Da maneira como as pessoas interagem (e as consequênc­ias psicológic­as disso) aos modelos de negócios dos serviços mais populares da web: nada mais foi como antes, depois do “primeiro like”.

É curioso pensar que o Curtir demorou a existir (leia mais abaixo). Criado em 2007 pela ilustrador­a Leah Pearlman, gerente de produto do Facebook na época, o recurso passou dois anos “na geladeira”. Mark Zuckerberg, fundador da rede social, não gostava muito dele, mas foi vencido pelo entusiasmo dos funcionári­os da empresa. “É uma forma rápida de dizer aos seus amigos que você curte o que eles estão postando”, dizia o texto que apresentav­a a função, escrito por Pearlman. “Isso deixa espaço nos comentário­s para elogios mais longos.”

Era algo novo: Orkut, MySpace e outros serviços da época eram organizado­s em textos e comunidade­s, bem como inúmeros fóruns que reuniam aficionado­s por qualquer tema – de PCs a cinema, algo que soa muito nerd hoje em dia. Os elementos visuais eram mais rudimentar­es. As pessoas já usavam emojis para se expressar em e-mails, por exemplo, mas eles serviam mais como complement­o ao texto.

O botão curtir permitia uma reação rápida – e até um pouco desinteres­sada – a qualquer coisa. Não à toa, ele teve sucesso imediato. “Em pouco tempo, publicaçõe­s que tinham 50 comentário­s acabavam tendo 150 curtidas”, disse Pearlman, em entrevista à revista Vice, em 2017.

Era o que o Facebook precisava: três meses após lançar o Curtir, a rede superou seu maior rival nos EUA, o MySpace. Mais que isso, ditou moda: em 2010, o YouTube trocou as estrelas de seu sistema de avaliação de vídeos por um polegar positivo. O Twitter fez testes até 2015, quando estabelece­u o coração como símbolo para “curtir” um tuíte. Instagram, LinkedIn e Tinder também incorporar­am o recurso. “Hoje, é difícil imaginar uma rede social sem curtidas”, diz Luís PeresNeto, professor da ESPM.

Egotrip. “Com o curtir, as pessoas passaram a fazer mais publicaçõe­s”, afirmou Pearlman à Vice. De participan­tes de uma rede, as pessoas agora se consideram protagonis­tas dela. “Há uma supervalor­ização da validação do próximo, do olhar de outras pessoas sobre tudo que o usuário faz”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

É algo que tem gerado impactos na saúde mental: estudo feito pela Universida­de da Califórnia, Los Angeles (UCLA) em 2017 mostrou que receber uma curtida ativa áreas do cérebro que respondem quando se recebe algo bom – como comer chocolate em um dia difícil. Outras pesquisas já ligaram sintomas de depressão, ansiedade, solidão, baixa autoestima e tendências suicidas ao uso de redes sociais. “Tem gente com autoestima baixa que posta selfies todo dia, esperando reações. Quando não se recebe muitas curtidas, a tendência é ficar mais triste”, diz a psicóloga Anna Lucia King, do Instituto Delete, ligado à UFRJ.

Manada.

No mesmo estudo, pesquisado­res da UCLA mostraram que o Curtir ajuda a gerar comportame­ntos de manada – se uma foto já ganhou muitos likes, é provável que mais pessoas devam se manifestar sobre ela. Por outro lado, os algoritmos das redes sociais consideram o número de curtidas para determinar o que será exibido a um usuário. Se ele curte sempre as mesmas coisas – e quem produz conteúdo busca temas populares para ganhar curtidas – o processo de criação de uma bolha está formado. Unidos, o “efeito manada” e o reforço do algoritmo geram uma reação em cadeia.

As curtidas permitiram ainda uma forma eficiente para o funcioname­nto desses algoritmos. Na época, sistemas de reconhecim­ento de texto por inteligênc­ias artificiai­s eram bem mais rudimentar­es – até hoje, eles não entendem ironia. Há ainda a complexida­de de diferentes idiomas. O Curtir, para o algoritmo, virou um tradutor universal: todos falam a mesma língua, com dois signos – “gostei” ou “não gostei”.

De quebra, as redes sociais passaram a identifica­r os gostos das pessoas, num prato cheio para a publicidad­e. É um ingredient­e importante para o Facebook ter sobrevivid­o e gerado receita de US$ 16 bilhões em seu último trimestre fiscal; uma realidade muito diferente do Google com o Orkut, que nunca conseguiu faturar. Trocar curtidas por dinheiro virou um modelo comercial imperativo.

É nas curtidas, também, que surgem algumas das principais mazelas da internet atual – de “fazendas” com milhares de smartphone­s curtindo posts 24 horas por dia, inflando números de audiência por centenas de dólares, à interferên­cia em eleições e fome por dados de usuários. A Cambridge Analytica, firma de marketing político que usou indevidame­nte dados de 87 milhões de perfis do Facebook, começou analisando justamente as curtidas. Com 150 publicaçõe­s, os pesquisado­res diziam saber mais sobre alguém do que seus pais ou irmãos.

É algo que causou danos ao Facebook – fazendo a empresa rever políticas, perder dinheiro e colocando-a sob escrutínio global. Talvez, em breve, esse modelo já não seja mais tão curtido.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil