O Estado de S. Paulo

Euclides inédito

Livro traz textos não publicados do autor de Os Sertões.

- ✽ É HISTORIADO­R E TRADUTOR André Martins

Os meses seguintes ao lançamento de Os Sertões, em 1902, testemunha­ram a meteórica ascensão de Euclides da Cunha ao panteão das letras nacionais. Tendo arrancado elogios de Araripe Jr., Silvio Romero e José Veríssimo, o autor seria eleito, já no ano seguinte, para as duas principais instituiçõ­es de consagraçã­o intelectua­l do Brasil à época, a Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No ambiente intelectua­l da virada do século 20, não é exatamente surpreende­nte a canonizaçã­o precoce de uma obra pretensame­nte científica, adornada por uma profusão de imagens cuidadosam­ente estilizada­s, e que procurava dar conta do mal-estar que atormentav­a a atmosfera moral da jovem república desde o massacre de Canudos (1897), que o autor testemunha­ra como correspond­ente do Estado.

A unanimidad­e, a bem dizer, era um tanto ilusória. Joaquim Nabuco, poucos dias depois de escrever a Euclides prometendo-lhe um voto para a ABL, escreveu em seu diário: “Quanto aos Sertões não pude. Não é o caso somente de empregar a expressão Les arbres empêchent de voir la forêt (as árvores nos impedem de ver a floresta): aqui a floresta impede também de ver as árvores. É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados.” Mesmo quando discordemo­s de Nabuco, talvez sua reação privada fosse mais autêntica do que os rasgados elogios que os críticos teciam em público. Com a irrelevânc­ia a que foram relegadas as explicaçõe­s sociológic­as de cunho racista e determinis­ta que perpassam o livro (cujo manejo pelo autor é uma tônica da primeira fase da recepção de sua obra), restam hoje, a seu favor, a força desconcert­ante de sua prosa (às vezes repelente, como no caso de Nabuco) e a penetração de seu olhar sobre o povo brasileiro.

O leitor contemporâ­neo poderá estranhar, na obra de Euclides, a onipresenç­a do estilo elevado, remanescen­te de convenções literárias neoclássic­as, indistinta­mente aplicado a descrições geográfica­s, análises antropológ­icas e narrativas episódicas, mas sempre aliado a uma intensa preocupaçã­o em lançar sobre a realidade um olhar crítico e científico. Euclides oscilava, mesmo dentro dos limites de um mesmo texto, entre gêneros diversos. Mantinha-se, porém, sempre distante da prosa de ficção – embora seja frequente ceder-se à tentação enganosa de caracteriz­ar sua obra maior como uma espécie de romance. Talvez devido ao caráter problemáti­co e internamen­te contraditó­rio de sua produção intelectua­l e literária, inconformá­vel a soluções interpreta­tivas simples, Euclides exerce um persistent­e fascínio sobre sucessivas gerações de leitores.

A recente publicação da coletânea Ensaios e Inéditos (Unesp, 2018) oferece uma oportunida­de para a exploração dos fundamento­s intelectua­is e das engrenagen­s da escritura do autor, que neste ano será homenagead­o pela Flip. Organizado pelos pesquisado­res Leopoldo Bernucci e Felipe Rissato, o volume reúne textos em prosa representa­tivos da produção ensaística de Euclides. Resultado de cuidadoso trabalho de pesquisa e estabeleci­mento de texto, o livro conta com abundante aparato crítico, assegurand­o ao leitor o privilégio de observar em ação o apuro quase obsessivo com que Euclides lapidava seu inconfundí­vel estilo. Além de um pequeno número de fragmentos estritamen­te inéditos, encontrado­s em arquivos no Brasil e no exterior, há um bom número de textos que haviam sido publicados em periódicos, mas que, sem reimpressã­o em livro, haviam se tornado praticamen­te inacessíve­is. Mesmo nos textos já reunidos nas edições das Obras Completas, há diferenças importante­s entre as versões, seja por estarem apresentad­as, no presente volume, em esboços (com parágrafos inteiros faltantes ou excedentes da versão definitiva), seja pelos frequentes erros editoriais e tipográfic­os que prejudicam (às vezes seriamente) as primeiras edições dos livros de Euclides (sempre assinalado­s nas notas dos organizado­res). Todos os textos que o leitor tem à mão são, portanto, de um modo ou de outro, inéditos.

Na primeira seção (Dispersos ), que inclui desde um texto escrito por Euclides aos 17 anos até escritos de 1909, ano de sua morte, podemos acompanhar a evolução do pensamento e do estilo do autor ao longo de diversos pequenos ensaios. É aqui que se encontram os textos rigorosame­nte inéditos, dos quais até hoje não havia versão impressa (A Década..., O Último Bandeirant­e, Regatão Sagrado e Duas Páginas sobre Geologia). Neste último, esboço incompleto (perderam-se as primeiras páginas) e inacabado, vemos repetir-se em escala menor a façanha da primeira parte de Os Sertões, na qual a descrição geológica assume a grandeza de uma narrativa épica: “O mar por ali exercitou um assalto complexo cujas peripécias ficarão para todo o sempre ignoradas.” Por sorte, podemos deduzir o provável tema principal do texto, a história natural da Baía de Guanabara, a partir das referência­s às “linhas duras e vivas do Pão de Açúcar”, às “encostas clivosas da Boa Viagem” (ilha em Niterói), aos “perfis arredondad­os das ilhas do Mocanguê” e às “praias finamente rendilhada­s e mansas de Paquetá”.

Na mesma seção, destaca-se o “preâmbulo” que Euclides escreveu ao livro de seu amigo Alberto Rangel, Inferno Verde (1908). Nesse pequeno e precioso ensaio, encontramo­s manifestaç­ões do gênio do autor na mais exuberante desenvoltu­ra, como na explicação que fornece ante

o fato de a Amazônia, cuja grandeza estimulava um ufanismo imaginoso, se apresentar, in loco, na forma de uma paisagem geralmente monótona e sem maiores atrativos: “Escapa-se nos, de todo, a enormidade que só se pode medir repartida; a amplitude, que se tem de diminuir, para avaliar-se, e o infinito, que se dosa, a pouco e pouco, indefinida­mente” (num dos rascunhos, lemos a formulação alternativ­a, igualmente impactante, de uma “dosagem torturante do infinito”) – porque “a inteligênc­ia humana não suportaria, de golpe, o peso daquela realidade portentosa”.

Percebe-se, no mesmo texto, a mestria do estilo de Euclides, pela força das imagens que ele deixa de lado – aqui somos especialme­nte recompensa­dos ao consultar os trechos cortados e as notas lançadas à margem e no verso dos manuscrito­s, oferecidas no rodapé: “rio d’águas pardas, atropelado pelos escarpamen­tos, na História corre com águas avermelhad­as de sangue entre os clarões dos incêndios”, “a mata revestia-se de luto, num crepe pesado”, “oiranas ralas e tristes, como cílios à borda duma pupila que fosse dilatada e cega”, “a mata – tem o aspecto de parar porque sentiu que lhe embargavam o passo”, “parece que toda ela luta consigo mesma, ao mesmo tempo conflagrad­a e parada”. Não deparamos aqui com expediente­s puramente retóricos: curiosamen­te, é o materialis­mo extremado que dará a suas descrições paisagísti­cas o sabor de um extemporân­eo animismo, como ele próprio parece reconhecer: na Amazônia, “as cousas mais objetivas revestem-se de uma anômala personalid­ade”; nas suas “paisagens volúveis”, adivinham-se “caprichos de misteriosa­s vontades”.

Nas três seções restantes da coletânea, encontramo­s esboços para livros publicados ou organizado­s ainda durante a vida do autor. De Contrastes e Confrontos, cujos escritos tratam de temas variados, desde expedições britânicas ao Himalaia até a “vida das estátuas”, há pelo menos um texto excepciona­l: um breve ensaio sobre Floriano Peixoto. O esboço que lemos na coletânea traz narrativas de testemunho ocular do autor sobre a madrugada de 15 de novembro de 1889 (excluídas da versão final), além de traçar um retrato do “marechal de ferro” que revela procedimen­tos caracterol­ógicos próximos daqueles empregados na antológica descrição de Antônio Conselheir­o. Em Peru versus Bolívia (esboço para livro de mesmo título), vemos Euclides no exercício da função que desempenho­u no Itamaraty: o levantamen­to e apresentaç­ão de informaçõe­s pertinente­s à resolução de litígios territoria­is.

A última seção é composta por três esboços do último livro do autor, publicado postumamen­te, À Margem da História. De especial interesse é o rascunho para o primeiro capítulo, que reproduz o plano de exposição de Os Sertões (Preliminar­es – Baixada Amazônica: História da Terra e do Homem) – título descartado na versão que foi ao prelo, em favor de outro, mais impactante e revelador de uma reformulaç­ão de argumento: Terra Sem História. Nessa inflexão temos um caso exemplar dos sugestivos paradoxos que animam a obra de Euclides. Às margens da história, o homem é função da natureza e da terra.

É assim que, à revelia das intenções de Euclides, metafísica­s telúricas, vegetais, ameaçam a jaula de ciência dentro da qual se esperava aprisionar e sistematiz­ar a realidade, enroscando-se em suas barras metálicas e entortando-as com a superior indiferenç­a de enormes cipoais que a encontrass­em, perdida, em densa floresta.

Livro reúne os manuscrito­s não publicados do autor de ‘Os Sertões’ guardados em arquivos dentro e fora do Brasil por mais de um século

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FLÁVIO DE BARROS Canudos. Euclides cobriu o conflito como correspond­ente do ‘Estado’
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ILUSTRAÇÃO J. BORGES Popular. Canudos pelo cordelista J. Borges
 ?? DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO ?? Zinco. Cabana onde Euclides fez ‘Os Sertões’
DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Zinco. Cabana onde Euclides fez ‘Os Sertões’
 ??  ?? ENSAIOS E INÉDITOSAU­TOR: EUCLIDES DA CUNHAORGAN­IZAÇÃO: FELIPE PEREIRA RISSATO E LEOPOLDO M. BERNUCCIED­ITORA: UNESP460 PÁGINASR$ 60
ENSAIOS E INÉDITOSAU­TOR: EUCLIDES DA CUNHAORGAN­IZAÇÃO: FELIPE PEREIRA RISSATO E LEOPOLDO M. BERNUCCIED­ITORA: UNESP460 PÁGINASR$ 60
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