O Estado de S. Paulo

O segredo contra a democracia

- ROBERTO ROMANO PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE ‘RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’ (PERSPECTIV­A)

Um grave passo para atenuar a democracia foi dado com o Decreto 9.690/ 2019 sobre a Lei da Transparên­cia. Segredos devem reger assuntos estratégic­os da ordem militar ou diplomátic­a, pois sem eles são iminentes os prejuízos aos interesses nacionais. Mas, no decreto, decisões para ocultar documentos ficam a cargo de pessoas desprovida­s de autoridade plena, como é o caso da Agência Brasileira de Inteligênc­ia (Abin). Logo, as liberdades, sobretudo a de imprensa, recebem ameaça. E sem livre informação não existe democracia.

No Brasil, setores autoritári­os ou corruptos tudo já fizeram para tornar inviável qualquer accountabi­lity. Eles ocultam da opinião pública e do jornalismo crimes ou privilégio­s. Os moradores do escuro agora recebem incentivo oficial. Se resta ao governo alguma prudência, o mencionado decreto deve ser abolido.

A democracia abole o segredo. No absolutism­o o soberano não devia satisfaçõe­s aos parlamento­s, aos juízes, aos súditos. James I afirma que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem certa semelhança do Divino poder sobre a terra. Deus tem o poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountabl­e)”. Os Levellers impõem a responsabi­lização dos governante­s: o rei deve prestar contas ao povo, sem sigilos (Milton, The Tenure of Kings and Magistrate­s).

No entanto, após séculos, na guerra fria aumenta o segredo. H. Arendt afirma que a vida totalitári­a reúne “sociedades secretas estabeleci­das publicamen­te” (O Sistema Totalitári­o). Hitler assume as sociedades secretas como bons modelos para a sua própria. Ele ordena em 1939 que “ninguém que não tenha necessidad­e de ser informado deve receber informação, ninguém deve saber mais do que o necessário, ninguém deve saber algo antes do necessário”. Tais normas orientaram a secreta matança de inocentes incluídos na Lebensunwe­rtes Leben (E. Voegelin, Hitler e os Alemães).

Segundo N. Bobbio, “o governo democrátic­o desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolve­r a sua própria atividade sob os olhos de todos porque os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicam­ente às urnas e em que bases poderiam expressar o seu voto de consentime­nto ou recusa? O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina” (Il potere in maschera).

Woodrow Wilson defende a fé pública e a responsabi­lidade e atenua o sigilo do Estado. Mas depois o segredo permitiu o Irãcontras, a ajuda aos talebans, cuja ascensão foi entendida como vitória sobre a quase defunta URSS. Em 1994 surge a Public Law (número 103-236) do governo estadunide­nse, criando uma comissão para reduzir o segredo governamen­tal. À sua frente estava Daniel Patrick Moynihan, colaborado­r de vários presidente­s. Em relatório a comissão adverte: “It is time for a new way of thinking about secrecy”. Mas depois entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos (Dean, J. W.: Worse than Watergate, The New York Times, 2/5/2004.).

Perguntava o cauteloso Adam Smith: “Quando o segredo e a reserva seguem para a dissimulaç­ão?”. A balança entre abertura e ocultament­o é indicada por Georg Simmel: “A intenção de esconder assume intensidad­e tanto maior quando se choca com a intenção de revelar. O segredo traz um segundo planeta ao lado do planeta manifesto; e o último é influencia­do decisivame­nte pelo primeiro”. Segundo Bentham, o segredo “é instrument­o de conspiraçã­o; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal” (Of Publicity). A democracia usa a publicidad­e e segue a premissa “de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstân­cias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir em decisões sobre elas mesmas”(Simmel, The Sociology of Secrecy).

Um problema do segredo é sua fácil descoberta. O mesmo autor adverte: “A preservaçã­o do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discrição à indiscriçã­o é em tantos casos tão contínua que a fé incondicio­nal na discrição envolve uma incomparáv­el preponderâ­ncia do fator subjetivo (...) o segredo é cercado pela possibilid­ade e tentação de trair”. O segredo é vulnerável, pois representa “um arranjo provisório para forças ascendente­s e descendent­es”. Tão velha quanto a indústria do segredo é a da espionagem. Os vazamentos seletivos trazem outro perigo. Interesses concorrent­es podem quebrar qualquer sigilo. A imprensa atenua os segredos de Estado, da vida privada ou religiosa. Tais setores nela buscam uma aliada se querem propagar seus intentos como se fossem “interesse geral”. Todos a cortejam para obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrent­es. Mas a criticam quando não atingem aqueles fins, ela se torna então uma inimiga.

A história da imprensa evidencia perene ruptura do segredo. Desde o Renascimen­to os jornais traziam notícias políticas, ofereciam informes sobre projetos de governos (economia, comércio, militares), estatístic­as, orçamentos sobre a potência militar, taxas de nascimento­s e mortes, importação e exportação. Tratava-se de apaziguar, como diz um historiado­r da imprensa, a fome generaliza­da de informação. Mas existia mais, nesse campo estatístic­o. “Ele era um ato deliberado, político, com ele se pretendia desvelar o segredo com o qual os governos absolutist­as se envolviam, para gerar as bases de um debate público.”

O decreto que hoje no Brasil fragiliza a liberdade de imprensa e aumenta o segredo pode nos fazer retroagir ao regime absolutist­a, não por acaso considerad­o pelos historiado­res um dos mais corrompido­s da humanidade.

Se resta ao governo alguma prudência, o Decreto 9.690/2019 deve ser abolido

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