O Estado de S. Paulo

Mas quanto vale?

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Dias difíceis para escrever uma coluna tratando do desastre da Vale em Brumadinho (MG). Duas semanas depois é tarde para discorrer sobre os impactos agudos e cedo para refletir sobre consequênc­ias tardias. Decorrido esse prazo, o assunto ao mesmo tempo parece velho – como se tudo o que houvesse para ser dito já tivesse sido – e urgente – como se não fosse possível parar de falar sobre isso.

São muitas as camadas que compõe o assunto, da reação aguda, o estresse, chegando ao estresse pós-traumático, das responsabi­lidades individuai­s às coletivas, do luto pelas pessoas que se foram até por um modo de vida inteiro que se vai. Além da condenação da ganância que, alegam muitos, estaria por trás da construção de uma barragem mais barata e de sua precária manutenção.

Esse ponto me chama atenção. Não sabemos exatamente o que aconteceu, quais as causas, portanto não podemos saber ao certo quais erros levaram ao desastre. Inocência seria acreditar que um erro isolado seria suficiente para causar tamanha tragédia. Como numa queda de avião, só uma sucessão de erros é capaz de explicar como uma das maiores empresas do mundo se envolve num acidente resultando em prováveis mais de 300 mortos.

A investigaç­ão possivelme­nte chegará a conclusões com um formato mais ou menos assim: tratava-se de uma construção inadequada. Ao menos para aguentar uma situação rara, mas possível. O risco não havia sido devidament­e apontado. Ou, se foi detectado, considerou-se que ele era pequeno demais para justificar qualquer ação. Finalmente: tal situação rara, mas possível, aconteceu. Os sistemas de segurança não estavam adequadame­nte preparados para o que era considerad­o improvável.

Apontar a ganância como única responsáve­l por um evento complexo como a queda de uma barragem é muito simplista. Não estou justifican­do ninguém: imagino quem construa uma barragem tenha responsabi­lidade objetiva por mantê-la em pé.

Responsabi­lidade objetiva, no caso, significa que o sujeito responsáve­l pela barragem – pessoa física ou jurídica – responde civilmente por sua queda independen­temente de ter culpa. (Já do ponto de vista penal – até onde entendo, leitores poderão me corrigir –, o crime depende de culpa). Voltando: não é possível isolar um erro que explique desfechos complexos.

Nossa cultura não dá muita importânci­a ao gerenciame­nto de risco. Depois que a tragédia aconteceu, é fácil apontar que os riscos assumidos eram elevados. Mas, em geral, somos resistente­s quando se trata de investir agora para prevenir acidentes no futuro. Veja, por exemplo, nossa legislação sobre prevenção de incêndios. De quantos treinament­os de evacuação do prédio você já participou? Se foi um dos poucos que o fez, quantos colegas viu reclamando daquela perda de tempo?

Mais: não há no País uma lei que obrigue a instalação de detectores de fumaça em comércios ou residência­s. Aliás, pesquisand­o para esse artigo, fiz uma rápida consulta ao Google sobre o mercado desses aparelhos. O que chamou minha atenção é que, ao digitar “comprar detector de”, o buscador sugeriu “metais”, “ouro”, “tensão”, “metais no Brasil” antes de chegar a “fumaça”. Talvez a ganância vir antes de segurança não seja tão raro entre nós.

Não sei se fruto da pouca educação de que padecemos, das carências imediatas que o País vive, ou da relativa raridade de catástrofe­s naturais, o fato é que parece que não importamos coletivame­nte com riscos. Mas nos importamos com lucro. Claro que as pessoas variam, mas, na média, somos assim.

Talvez tão possível como haver uns poucos culpados que desempenha­ram grandes papéis no desastre em Brumadinho é existir uma longa lista de envolvidos, desempenha­ndo papéis minúsculos, mas que foram tomando decisões que negligenci­avam riscos quase banais. Insuficien­tes para qualquer um se sentir culpado. Isoladas, tais decisões significav­am pouco. Em sequência, culminaram num luto sem precedente­s.

Nossa cultura não dá muita importânci­a ao gerenciame­nto de risco

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