O Estado de S. Paulo

Tragédia como de hábito

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Não se escapa da tragédia. Não do fato em si, mas dos relatos. Mesmo quem não tem o hábito das redes sociais, quem se isola ou evita o que pode as novidades, prevendo que são geralmente desagradáv­eis, não escapa delas. Estava eu andando e pensando que tinha encontrado um bom tema para esta coluna de domingo quando, ao passar pela banca de jornais, o jornaleiro meu amigo não me disse sequer bom dia, foi logo dizendo: “Você viu o que aconteceu no Flamengo?”

Não, não tinha visto, e pelo tom da voz do meu amigo deduzi que não queria ver. Mas ele me contou tudo em poucas e exatas palavras.

Mais uma das desgraças que parecem não deixar o horizonte do Brasil. É Brumadinho, com mortes e mais mortes, vendaval no Rio de Janeiro, que também teve vítimas, esse incêndio no Flamengo, terrível por atingir adolescent­es quase crianças.

Meu primeiro sentimento foi de raiva da própria tragédia que vinha intercepta­r grosseiram­ente minha ideia inicial da coluna. Se eu me deixar impression­ar por todas as tragédias do Brasil, não consigo mais escrever sobre outra coisa. Às vezes é preciso se desviar cuidadosam­ente da realidade para poder pensar em algo melhor. Tentei. Fiquei com a minha ideia da coluna, mas notei que ela já se tinha apagado um pouco da minha mente. Mais alguns minutos e tinha desapareci­do. Não me lembrava mais de nada da minha bela e criativa futura coluna. O incêndio do Flamengo tinha desabado sobre ela implacavel­mente.

Para minha própria surpresa fui à internet, talvez procurando alguma coisa que tornasse essa nova tragédia diferente das demais. Não era. Era apenas uma combinação de falta de sorte e de atraso que nos persegue, ou melhor, persegue quem é alvejado por essas tragédias. Está lá todo o nosso atraso.

Não precisei nem ler para saber que as instalaçõe­s não eram impecáveis. O que é impecável neste País quando se trata de assegurar direitos? Essas instalaçõe­s estavam a ponto de ser abandonada­s pelos meninos, que seriam transferid­os para lugar supostamen­te melhor. Em outros tempos tinham sido instalaçõe­s do time profission­al do Flamengo, o que demonstra que os garotos ocupavam lugar de segunda mão, provavelme­nte ultrapassa­do e com problemas.

Vi, no entanto, o depoimento de um garoto que, inquirido, respondeu que as instalaçõe­s eram muito boas e ofereciam todo o conforto. Antes que eu pensasse que o garoto mentia por medo de represália­s, me ocorreu que ele falava a exata verdade. As modestas instalaçõe­s que pegaram fogo certamente eram bem melhores que às que o menino estaria acostumado nas periferias do Rio de Janeiro ou de São Paulo, ou de qualquer cidade. Comparadas com o lugar que provavelme­nte vivia, as instalaçõe­s que queimaram eram boas e confortáve­is.

No fundo, não interessa muito o que aconteceu. Não adianta repetir a lenga-lenga de sempre, culpar os dirigentes pela milésima vez, falar de irresponsa­bilidade geral, descaso, desmando. Eu, particular­mente, não aguento mais isso tudo.

Uma coisa, porém, conseguiu me deixar surpreso, desagradav­elmente, é claro. Já enfronhado no assunto, topei com um site que apresentav­a outros depoimento­s de meninos sobreviven­tes. Um deles continha um depoimento absolutame­nte ininteligí­vel de um garoto desesperad­o e aos prontos. Não tinha, aliás, nenhuma importânci­a o que ele dizia. O assombroso era o desespero e o choro convulsivo.

Isso tudo eu vi depois porque, ao acionar o depoimento do menino, a primeira coisa que entrou foi um alegre, vibrante e colorido comercial das Casas Bahia, seguido do depoimento do menino em lágrimas. Tudo era uma única peça: o comercial de ofertas e o testemunho desesperad­o. Poucas vezes vi algo que mostrasse tão claramente o processo de desumaniza­ção a que estamos sendo submetidos. Até as tragédias já vêm com patrocínio.

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