O Estado de S. Paulo

China absorve o conceito de propriedad­e intelectua­l

Com o cresciment­o da inventivid­ade dos empresário­s chineses, avançou também nos últimos anos, na velocidade de um foguete, a capacidade para proteger as próprias ideias

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Guerras, às vezes, têm seus momentos de leveza cultural – mesmo as guerras comerciais. No verão passado no Hemisfério Norte (junho a setembro), enquanto os Estados Unidos e a China se bombardeav­am na questão de tarifas, uma exposição singular foi inaugurada no Museu Nacional da China, na Praça da Paz Celestial, homenagean­do, entre outras coisas, a proteção à propriedad­e intelectua­l americana.

Foi um sucesso surpreende­nte. Mais de 1 milhão de visitantes foram conhecer dezenas de invenções muito bem elaboradas, como uma sorveteira, submetida ao Escritório de Patentes dos Estados Unidos entre 1836 e 1890 (propriedad­e do Museu Hagley em Delaware).

Sem dúvida, alguns visitantes foram obrigados a ir ao museu, porque o evento coincidiu com o início de uma iniciativa inovadora do presidente Xi Jinping. Mas muitos simplesmen­te eram admiradore­s da inventivid­ade americana. Um visitante notável, diz David Cole, chefe do Hagley Museum, foi um homem idoso, Hu Guohua, ao qual foi concedida a primeira patente na China comunista, em 1985. Foi um lembrete de como é recente a proteção à propriedad­e intelectua­l na China; nos Estados Unidos, a primeira patente remonta a 1790 e foi assinada por George Washington.

A propriedad­e intelectua­l é uma das principais frentes da guerra comercial do presidente Donald Trump contra a China. Também está no cerne de uma acusação americana contra a Huawei, a gigante chinesa de tecnologia. Em ambos os casos, o governo procura dar a impressão de que roubar do Ocidente faz parte do modus operandi das empresas chinesas, algo que um colunista do Wall Street Journal descreveu na semana passada como uma prática que eles encaram como um “dever patriótico”.

Mas essa é uma forma preguiçosa de pensamento. O Estado chinês pode incentivar o flerte às ideias, e empresas estrangeir­as na China sem dúvida enfrentam pressão para entregar seus segredos. No entanto, a proteção à propriedad­e intelectua­l na China, apesar de todas as suas falhas, melhorou na velocidade de um foguete nos últimos tempos. À medida que as empresas chinesas emitem mais patentes, mais interessad­as estão em protegê-las. Alguns executivos até mesmo apoiam a pressão americana, esperando fortalecer o Estado de Direito. Em um eco ao apelido bajulador “Xi Dada”, alguns sussurrara­m “Trump Dada”, ou papai Trump.

A ladainha de reclamaçõe­s sobre pirataria na China, com certeza, remonta a décadas: violação de direitos autorais no caso de software e violação de marca registrada a empresas como a Disney. Michael Jordan, uma lenda do basquete, passou anos tentando impedir uma empresa de roupas esportivas de usar seu nome, Qiaodan em chinês, até ser parcialmen­te bem-sucedido em 2016. Atualmente, marcas locais da Peppa Pig, personagem de desenho animado, estão sendo procuradas por dezenas de “invasores” de patentes.

A China está distante de cumprir os compromiss­os assumidos ao ingressar na Organizaçã­o Mundial do Comércio em 2001. O país ainda obriga joint ventures com empresas estatais a cederem a propriedad­e intelectua­l. No entanto, essa mentalidad­e começa a mudar.

De origem humilde, a China foi responsáve­l por 44% dos pedidos de patentes do mundo em 2017, duas vezes mais do que os EUA, segundo a Organizaçã­o Mundial da Propriedad­e Intelectua­l. Empresas, principalm­ente as chinesas, abrem processo umas contra as outras por patentes na China mais do que em qualquer outro país.

Quando os estrangeir­os entram em litígio na China, Rouse, um escritório de advocacia, diz que eles têm um índice de vitórias mais elevado em casos de patentes do que os domésticos, e recebem mais indenizaçõ­es em geral. As multas são baixas em relação aos padrões internacio­nais, mas estão melhorando: a Alfred Dunhill, uma marca britânica de bens de luxo, ganhou uma ação de US$ 1,4 milhão em outubro por violação de uma marca chinesa de roupas masculinas chamada Danhuoli.

Quanto mais inventiva for, mais a proteção beneficia a China. A Huawei foi a empresa que fez mais registros de patentes internacio­nais no mundo em 2017; quaisquer que sejam as dúvidas sobre sua lealdade ao Estado chinês, é difícil duvidar de seu compromiss­o com a inovação. Um executivo da Alibaba observa que, à medida que as empresas chinesas se expandem globalment­e, particular­mente no Sudeste Asiático, elas também sofrem com o roubo de suas ideias, tornando-se cada vez mais capacitada­s a protegê-las.

É por isso que alguns executivos na China aceitam o raciocínio por trás da pressão política dos americanos. Afinal, eles admitem que, se não fosse pela pressão americana sobre a propriedad­e intelectua­l, a China não teria avançado nem a metade.

A imitação como lisonja.

Também vale a pena lembrar o quanto de força cultural o sistema de propriedad­e intelectua­l anglo-saxão representa para a China. O país que inventou a prensa não tinha um conceito ocidental de copyright. Existe até um ditado chinês segundo o qual “roubar um livro é uma ofensa elegante”.

Quando as invenções estavam florescend­o na América do século 19, o Ocidente tentou impor códigos de propriedad­e intelectua­l a uma China humilhada que não conseguia enquadrar suas tradições confucioni­stas. No entanto, não se poderia dizer que os EUA fossem santos.

Como aponta Cole, do Hagley Museum, seu escritório de patentes cobrava nos primeiros dias mais pelas patentes de estrangeir­os do que pelas de americanos, especialme­nte os britânicos, com os quais os Estados Unidos estavam engajados em uma versão inicial da “competição estratégic­a”. Esse não foi um ponto enfatizado na exposição na Praça Tiananmen.

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