A CRISE POR ZIZEK
Mais um livro de Slavoj Zizek traduzido no País: A Coragem da Desesperança, à venda a partir da próxima quinta-feira, 14. Zizek publica mais livros do que somos capazes de absorver, noves fora os debates, as conferências e entrevistas que ajudam a consolidar sua onipresença midiática. Coletânea de ensaios dispersos e mais ou menos conexos sobre um largo repertório de controversos temas contemporâneos – do ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo ao concurso do Eurovision vencido por uma drag queen – seu título inspirou-se numa expressão do filósofo italiano Giorgio Agamben. No subtítulo – Crônicas de um Ano em que Agimos Perigosamente –, uma homenagem, suponho, àquele filme de Peter Weir ambientado no ano (1965) em que Mel Gibson viveu perigosamente na Indonésia de Sukarno.
2016 foi o ano em que, segundo Zizek, agimos perigosamente. O annus horribilis da eleição de Trump, do referendo do Brexit, dos ataques brutais do Estado Islâmico em Paris e Nice, das mortes de Prince, David Bowie e George Michael (Zizek é ligadão na cultura pop) – sem contar, acrescento eu, os “acontecimentos desastrosos” do lado de baixo do Equador, desprezados pelo filósofo, um confesso eurocentrista só remotamente interessado nas desesperanças do lado de cá.
Além de filósofo hegeliano, psicanalista lacaniano e crítico cultural pós-marxista, o esloveno Zizek é um excêntrico e (segundo suas próprias palavras) pervertido cinéfilo, cujas análises socioculturais e políticas costumam ser polinizadas com referências cinematográficas. Desta vez, até a asinina figura do produtor Samuel Goldwyn marca presença com um de seus mais conhecidos “goldwynismos”.
Ao desancar a “contrarrevolucionária” classe dirigente da China, surfistas da última onda do capitalismo, Zizek compara seus integrantes aos invasores alienígenas do filme A Quinta Onda. Ele também é ligadão em ficção científica.
“Eu venderia minha mãe como escrava para assistir a uma segunda parte de V de Vingança”, confessa na introdução à coletânea, a que, aliás, deu o título de V de Vingança – Parte 2. Na subversiva aventura futurista de James McTeigue baseada em uma HQ de Alan Moore, milhares de londrinos desarmados, usando máscaras de Guy Fawkes, invadem o Parlamento britânico e tomam o poder. Saber o que aconteceria no dia seguinte à vitória popular e como a malta vitoriosa iria reorganizar sua vida cotidiana e gerir o Reino Desunido é uma curiosidade que intriga o filósofo desde que assistiu ao filme pela primeira vez.
Zizek nele viu ecoar o crescimento dos grandes protestos em praças públicas dos últimos anos (em Nova York, Cairo, Istambul, Paris, Atenas, Madri), que festejou, mas sem uma gota de otimismo. Reconhece seus méritos, seus efeitos performativos, seu poder de desafiar as relações de poder existentes, porém lastima que “o problema-chave de como passar do protesto agenciador à imposição de um novo poder, de como esse novo poder vai funcionar em oposição ao antigo”, continue intocado.
O que lhe saltou aos olhos naqueles protestos – meras “irrupções entre comunidades imigrantes guetizadas sem nenhuma pretensão de visão coletiva” – foi a total ausência de quaisquer perspectivas utópicas entre os manifestantes, o oposto das revoltas de Maio de 68. Por isso as desdenha como “pseudolutas”, catalizadoras de um “ódio caótico” que se dilui ou se transforma em populismo direitista, a gripe espanhola ideológica deste século.
Foi o ódio caótico ao anticapitalismo global e ao establishment político dos “deixados para trás por décadas de neoliberalismo” que elegeu Trump. E não apenas Trump, como sabemos. Azar dos pobres que o elegeram – e não só a ele, como sabemos. Porque os populistas, alerta Zizek, já não têm mais nenhuma esperança de restaurar empregos fabris (principal promessa de campanha de Trump) nem conter os fluxos maciços de migrantes e refugiados, que continuarão, “pois os populistas não têm nenhum plano para lidar com a raiz do problema.”
O que Zizek estará achando do atual movimento dos “coletes amarelos”, na França? Quase certamente o que achou do Occupy Wall Street, do Syriza grego e outros agitos contestatórios: improdutivos e domesticáveis.
Seu pessimismo – “nada esperando, aqui e ali fico agradavelmente surpreso (visto que as coisas não são tão ruins quanto poderiam ser)” – é um antídoto à depressão intrínseca aos otimistas, que entram em parafuso quando “veem suas esperanças arruinadas”. E esperanças arruinadas é o que não falta no mercado mundial de promessas redentoras.
Que mudanças podem ser implementadas quando entramos em desespero e não sabemos mais o que fazer?, pergunta-se o filósofo. Este seria o ponto zero de desesperança.
Sonhar com uma alternativa claramente discernível é, para ele, “um sinal de covardia teórica”, que funciona como “um fetiche que nos impede de considerar até o fim do beco sem saída do nosso dilema.” A verdadeira coragem seria admitir que a luz no fim do túnel é provavelmente o farol de um trem vindo na direção contrária.
Apesar de seu pessimismo, Zizek não descrê totalmente de uma saída revolucionária ou, como prefere chamar, eufemisticamente, de uma “emancipação radical das grandes massas”. O que poderia despertá-las com o necessário ímpeto? Só uma catástrofe radical, “preferivelmente uma catástrofe ecológica”, prevê o filósofo, que muitos filmes de desastre deve ter visto.
Apesar de seu pessimismo, o cientista social esloveno ainda acredita numa saída coletiva para o complexo ‘imbróglio’ em que o mundo se meteu em 2016