O Estado de S. Paulo

FREUD SEM REPULSA AO SEXO LIVRE

- Amanda Mont’Alvão Veloso É PSICANALIS­TA, JORNALISTA E MESTRANDA EM LINGUÍSTIC­A APLICADA PELA PUC-SP

“Mãe, o que é virgem?”, pergunta a garotinha, na cozinha, enquanto faz a lição de casa. Desconcert­ada, a mãe começa a construir uma explicação cifrada, cheia de metáforas, sobre sexo. A elaboração é longa, mas ela fica satisfeita por ter enfrentado o desafio da filha. Só não esperava o questionam­ento que veio na sequência: “Então, o que é extravirge­m?”

Sob uma mesma pergunta, a filha tenta entender o rótulo do azeite de oliva, e a mãe se embaraça toda ao pensar que é de sexo que a pequena está falando. Na graciosa propaganda britânica de 2008, a mãe se propõe a elaborar uma resposta, ainda que saiba que não é definitiva. Propor perguntas sobre sexo é o que a humanidade faz em voz alta ou em silêncio há milênios; o que diferencia a curiosidad­e do tabu é a disposição da sociedade em fazer circular esses questionam­entos e respondê-los.

Houve quem transforma­sse o assunto em protagonis­ta da investigaç­ão científica de toda uma vida. Antes da virada do século 20, a sexualidad­e já era matriz da Psicanális­e, criada quando o neurologis­ta Sigmund Freud se dispôs a responder perguntas com outras perguntas, em um rol de dúvidas bastante revelador. Se algo causava constrangi­mento, desconfort­o, agonia ou vergonha, ali estava um material clínico substancia­l ao pensamento psicanalít­ico.

Mas dar voz, corpo teórico e escuta a temas tão delicados instalou, também, inúmeras controvérs­ias, torcidas de nariz e incompreen­sões. O pai da Psicanális­e nunca se furtou à polêmica, e parte dela pode ser encontrada nos textos reunidos no livro Amor, Sexualidad­e, Feminilida­de, publicado pela Editora Autêntica dentro da coleção Obras Incompleta­s de Sigmund Freud. As produções datam de 1898 até 1935 e atravessam mudanças significat­ivas na obra dele, como a conceituaç­ão do narcisismo e a descoberta da pulsão de morte. Há também algumas cartas, amostras de um pensador afeito à correspond­ência – estima-se que ele tenha escrito cerca de 20 mil delas.

No título estão agrupadas algumas das ideias mais conhecidas, em termos de popularida­de, mas também mais deslocadas de seus contextos originais. Inveja do pênis, complexo de Édipo, complexo de castração, disposição bissexual inerente ao ser humano e sexualidad­e infantil parecem palavrões absurdos na era dos memes, das manchetes sensaciona­listas e da pós-verdade. Mas todas surgiram dentro de textos, inclusivos por meio de uma linguagem acessível e rigorosame­nte argumentad­os. Freud bem sabia que não há tranquilid­ade ao falar de amor, de sexo e do feminino, então cultivou um estilo de desmontar pensamento­s preconcebi­dos e o senso comum na medida em que parece acompanhar o leitor em suas suposições. A recepção destes textos foi polarizada inclusive entre a comunidade psicanalít­ica, heterogêne­a por premissa. O debate sobre a sexualidad­e feminina, por exemplo, dividiu as escolas inglesa e vienense de Psicanális­e, contextual­iza o livro. E até hoje estes textos são referencia­dos pelos estudos do feminismo, seja por sua relevância ou por sua rejeição.

A tradução, feita diretament­e do alemão por Maria Rita Salzano Moraes, traz novos entendimen­tos a frases até então clássicas: “o que quer a mulher” é retraduzid­a como “o que quer o feminino na mulher?” O cuidado com as palavras escolhidas por Freud recupera encaminham­entos cruciais para a sustentaçã­o da teoria e reage ao efeito apelativo e recortado que algumas leituras e transmissõ­es insistem em provocar. O la dopo si tivoé que afal tadeu nan imida deé sempre um fomento à pesquisa científica e ao furo nas certezas.

Os temas, em si, expõem as contradiçõ­es do pai da Psicanális­e. O tabu da virgindade e a diversidad­e de posição subjetiva das mulheres – ativa ou passiva, à escolha de cada uma – apontam para um vanguardis­mo que não encontrava precedente­s na vida íntima e ordinária do autor. Era um homem que apoiava a emancipaçã­o das mulheres, era contra apena de morte, a favor da aceitação da homossexua­lidade, admirador da Monarquia Constituci­onal eque achava o comunismo uma ilusão. Um conservado­r esclarecid­o, nas palavras de sua biógrafa, a historiado­ra francesa Elisabeth Roudinesco.

É comum identifica­r traços do patriarcad­o nas análises propostas por Freud, uma vez que as normas sociais vigentes na Viena do século 20 sobre determinar­am a subjetivaç­ão da sexualidad­e. Nãoà toa, os temas do amor, sexualidad­e e feminilida­de são entrelaçad­os e situados no tempo, cultura, aspectos históricos, crenças e inclinaçõe­s pessoais de seu teórico. São, portanto, sujeitos à revisão contínua e correções, tal como fazia o neurologis­ta.

Chama a atenção a atualidade da investigaç­ão sobre os efeitos de não se esclarecer as dúvidas que as crianças têm sobre sexo e reprodução. O pai da psicanális­e não via motivos para se tratar o sexual como algo digno de um segredo, assustador e repugnante. Para ele, as consequênc­ias ao sonegar tal informação vinham como sintomas neuróticos, que produziam sofrimento e representa­vam tentativas de respostas às perguntas não admitidas na infância. A falta de esclarecim­ento era um ensejo para as crianças produzirem suas próprias teorias – e viverem conforme estas ficções. Em 1907, em texto encomendad­o para um periódico de medicina, Freud se interroga quanto à onipotênci­a dos adultos: “Será que pensamos que as crianças não mostrariam nenhum interesse ou compreensã­o pelos fatos e enigmas da vida sexual se estes não lhe fossem apontados poro utros?”Ét ambé monde enfatiza queé tarefada escol anão se abster de falar sobre sexo. “É necessário que o sexual seja tratado, desde o início, da mesma maneira que outros assuntos dignos de conhecimen­to.” Cabe a pergunta que grita em um 2019 de vasto acesso à desinforma­ção: a quem interessa ocultar informaçõe­s e fatos que podem ser descoberto­s por meio de fontes não confiáveis?

Nova tradução do livro ‘Amor, Sexualidad­e, Feminilida­de’ mostra que o pai da psicanális­e era a favor da educação sexual contra a neurose e o sofrimento

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Tabu. Freud por Andy Warhol; para ambos, sexo não era repugnante
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AMOR, SEXUALIDAD­E, FEMINILIDA­DEAUTOR: SIGMUND FREUD TRADUÇÃO: MARIA RITA SALZANO MORAES EDITORA: AUTÊNTICA 382 PÁGS., R$ 64,90

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