FREUD SEM REPULSA AO SEXO LIVRE
“Mãe, o que é virgem?”, pergunta a garotinha, na cozinha, enquanto faz a lição de casa. Desconcertada, a mãe começa a construir uma explicação cifrada, cheia de metáforas, sobre sexo. A elaboração é longa, mas ela fica satisfeita por ter enfrentado o desafio da filha. Só não esperava o questionamento que veio na sequência: “Então, o que é extravirgem?”
Sob uma mesma pergunta, a filha tenta entender o rótulo do azeite de oliva, e a mãe se embaraça toda ao pensar que é de sexo que a pequena está falando. Na graciosa propaganda britânica de 2008, a mãe se propõe a elaborar uma resposta, ainda que saiba que não é definitiva. Propor perguntas sobre sexo é o que a humanidade faz em voz alta ou em silêncio há milênios; o que diferencia a curiosidade do tabu é a disposição da sociedade em fazer circular esses questionamentos e respondê-los.
Houve quem transformasse o assunto em protagonista da investigação científica de toda uma vida. Antes da virada do século 20, a sexualidade já era matriz da Psicanálise, criada quando o neurologista Sigmund Freud se dispôs a responder perguntas com outras perguntas, em um rol de dúvidas bastante revelador. Se algo causava constrangimento, desconforto, agonia ou vergonha, ali estava um material clínico substancial ao pensamento psicanalítico.
Mas dar voz, corpo teórico e escuta a temas tão delicados instalou, também, inúmeras controvérsias, torcidas de nariz e incompreensões. O pai da Psicanálise nunca se furtou à polêmica, e parte dela pode ser encontrada nos textos reunidos no livro Amor, Sexualidade, Feminilidade, publicado pela Editora Autêntica dentro da coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud. As produções datam de 1898 até 1935 e atravessam mudanças significativas na obra dele, como a conceituação do narcisismo e a descoberta da pulsão de morte. Há também algumas cartas, amostras de um pensador afeito à correspondência – estima-se que ele tenha escrito cerca de 20 mil delas.
No título estão agrupadas algumas das ideias mais conhecidas, em termos de popularidade, mas também mais deslocadas de seus contextos originais. Inveja do pênis, complexo de Édipo, complexo de castração, disposição bissexual inerente ao ser humano e sexualidade infantil parecem palavrões absurdos na era dos memes, das manchetes sensacionalistas e da pós-verdade. Mas todas surgiram dentro de textos, inclusivos por meio de uma linguagem acessível e rigorosamente argumentados. Freud bem sabia que não há tranquilidade ao falar de amor, de sexo e do feminino, então cultivou um estilo de desmontar pensamentos preconcebidos e o senso comum na medida em que parece acompanhar o leitor em suas suposições. A recepção destes textos foi polarizada inclusive entre a comunidade psicanalítica, heterogênea por premissa. O debate sobre a sexualidade feminina, por exemplo, dividiu as escolas inglesa e vienense de Psicanálise, contextualiza o livro. E até hoje estes textos são referenciados pelos estudos do feminismo, seja por sua relevância ou por sua rejeição.
A tradução, feita diretamente do alemão por Maria Rita Salzano Moraes, traz novos entendimentos a frases até então clássicas: “o que quer a mulher” é retraduzida como “o que quer o feminino na mulher?” O cuidado com as palavras escolhidas por Freud recupera encaminhamentos cruciais para a sustentação da teoria e reage ao efeito apelativo e recortado que algumas leituras e transmissões insistem em provocar. O la dopo si tivoé que afal tadeu nan imida deé sempre um fomento à pesquisa científica e ao furo nas certezas.
Os temas, em si, expõem as contradições do pai da Psicanálise. O tabu da virgindade e a diversidade de posição subjetiva das mulheres – ativa ou passiva, à escolha de cada uma – apontam para um vanguardismo que não encontrava precedentes na vida íntima e ordinária do autor. Era um homem que apoiava a emancipação das mulheres, era contra apena de morte, a favor da aceitação da homossexualidade, admirador da Monarquia Constitucional eque achava o comunismo uma ilusão. Um conservador esclarecido, nas palavras de sua biógrafa, a historiadora francesa Elisabeth Roudinesco.
É comum identificar traços do patriarcado nas análises propostas por Freud, uma vez que as normas sociais vigentes na Viena do século 20 sobre determinaram a subjetivação da sexualidade. Nãoà toa, os temas do amor, sexualidade e feminilidade são entrelaçados e situados no tempo, cultura, aspectos históricos, crenças e inclinações pessoais de seu teórico. São, portanto, sujeitos à revisão contínua e correções, tal como fazia o neurologista.
Chama a atenção a atualidade da investigação sobre os efeitos de não se esclarecer as dúvidas que as crianças têm sobre sexo e reprodução. O pai da psicanálise não via motivos para se tratar o sexual como algo digno de um segredo, assustador e repugnante. Para ele, as consequências ao sonegar tal informação vinham como sintomas neuróticos, que produziam sofrimento e representavam tentativas de respostas às perguntas não admitidas na infância. A falta de esclarecimento era um ensejo para as crianças produzirem suas próprias teorias – e viverem conforme estas ficções. Em 1907, em texto encomendado para um periódico de medicina, Freud se interroga quanto à onipotência dos adultos: “Será que pensamos que as crianças não mostrariam nenhum interesse ou compreensão pelos fatos e enigmas da vida sexual se estes não lhe fossem apontados poro utros?”Ét ambé monde enfatiza queé tarefada escol anão se abster de falar sobre sexo. “É necessário que o sexual seja tratado, desde o início, da mesma maneira que outros assuntos dignos de conhecimento.” Cabe a pergunta que grita em um 2019 de vasto acesso à desinformação: a quem interessa ocultar informações e fatos que podem ser descobertos por meio de fontes não confiáveis?
Nova tradução do livro ‘Amor, Sexualidade, Feminilidade’ mostra que o pai da psicanálise era a favor da educação sexual contra a neurose e o sofrimento