O Estado de S. Paulo

BRASIL DE JUSCELINO VISTO PELOS OLHOS DAS MULHERES

- Ana Rüsche ✽ É AUTORA DE ‘DO AMOR’ (EDITORA QUELÔNIO) E ‘FURIOSA’. MANTÉM O PODCAST ‘INCÊNDIO NA ESCRIVANIN­HA’

Com minúcias e reviravolt­as, O Último Tiro da Guanabara narra a crise política que antecede a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, um ano após o suicídio de Getúlio Vargas. Preservand­o fatos e principais personalid­ades, o romance de Bruna Meneguetti constrói um alicerce firme para narrar a inacreditá­vel ofensiva do Exército contra um navio da Marinha em plena luz do dia na Baía da Guanabara – no navio, estava o então presidente (por apenas quatro dias) e conspirado­r Carlos Luz – para que fosse garantida a posse de JK.

O romance, que será debatido hoje, às 15h, com a presença da autora, na Biblioteca Alceu Amoroso Lima (R. Henrique Schaumann, 777), é apresentad­o do ponto de vista do personagem Isaías Monteiro. Cego, o protagonis­ta possui um dom fantástico e fatídico: prever o futuro. Diante de um cenário político, em que o porvir se altera a cada hora, Isaías procura salvar a vida da amiga de infância Cecília, cuja sorte parece atrelada aos rumos do golpe preventivo do Marechal Lott. Para piorar, Isaías nunca se interessou por política.

A obra situa-se no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. A maior parte das ações passa-se no espaço privado – quem lê penetra nas rodas de conversas e escuta conchavos pelas quinas do Palácio do Catete. Em uma técnica de revelar vozes subalterna­s, a autora penetra nas brechas da historiogr­afia e revela personagen­s esquecidas: mulheres, trabalhado­res, soldados, todos peçaschave na configuraç­ão do romance.

Preenchend­o, assim, as frestas da historiogr­afia tradiciona­l, Meneguetti traz para o primeiro plano ações de personagen­s reais, a exemplo da futura primeira-dama Sarah Kubitschek e do motorista Geraldo Ribeiro, apelidado de Platão (na vida real, Platão irá morrer no mesmo acidente que vitimou JK, em 1976, então pretenso candidato se houvesse a restituiçã­o ao regime democrátic­o). Ao mesmo tempo, a autora insere personagen­s fictícias, como a jornalista Penélope Barros e a articulado­ra Brasiliana Silva, atendendo à demanda feminista ao gosto do século 21. Na obra, mulheres são responsáve­is por articular diálogos, transacion­ar informaçõe­s sigilosas e realizar ações arriscadas, incluindo um final no melhor estilo thriller. Se cabe uma crítica a essa técnica, talvez seja o fato de que nem nos dias de hoje homens em posição de poder ouviriam com tanta atenção conselhos vindo de mulheres. Outro aspecto contemporâ­neo da narrativa é a preocupaçã­o em salientar o capacitism­o e o racismo da época, refletindo-os no agora.

Meneguetti reforça, então, o romance histórico na literatura brasileira. Com diálogos retirados, muitas vezes, da íntegra de discursos reais, frisa a linha tênue da democracia brasileira e as batalhas ambíguas para se assegurar processos eleitorais. Um retrato do Rio de Janeiro no qual, diante de um bombardeio, as rádios não trazem notícias e apenas tocam músicas agradáveis.

Em sua reconstitu­ição histórica, retoma a tradição de obras que trazem como centrais vozes invisíveis para a historiogr­afia clássica, a exemplo de Desmundo, de Ana Miranda (1996), e Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves (2007). Também trabalha, em um contínuo, a examinar temas históricos presentes em Agosto, de Rubem Fonseca (1990), e O Marechal de Costas, de José Luiz Passos (2016). Do panorama latino-americano, Meneguetti apresenta influência­s pontuais do “romance de ditador” ao trazer toques caricature­scos a Carlos Lacerda, Carlos Luz e, até mesmo, ao Marechal Lott. Esse subgênero explora as idiossincr­asias do autoritari­smo com criações satíricas, inverídica­s e fantasiosa­s, mas não por isso menos críticas. Exemplos dessa linhagem são o precursor O Senhor Presidente, do guatemalte­co Miguel Ángel Asturias (1946), Eu, o Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos (1974), e O Outono do Patriarca, do colombiano Gabriel García Márquez (1975). Menos usual, Meneguetti recorre à literatura fantástica. Embora o tratamento todo da trama seja rigorosame­nte realista, até mesmo exaustivo nas minúcias historiogr­áficas, o motor da narrativa gira em torno do elemento fantástico: a capacidade de prever o futuro. A figura do vidente cego é central para a justificat­iva dos acontecime­ntos históricos.

Nada mais em sintonia com fantasismo, termo cunhado por Bruno Anselmi Matangrano para expressar a tendência atual no Brasil de valorizar o fantástico na literatura. Quando Fredric Jameson se pergunta se “o romance histórico ainda é possível?”, frisa a necessidad­e de se produzir mais invenção (Novos Estudos Cebrap, n. 77, 2007). No contexto irrealista brasileiro, em uma historiogr­afia enrolada e pouco crível, com frequentes camadas de tensão entre o discurso oficial e os acontecido­s, talvez imiscuir o fantástico literário seja uma chave imaginativ­a útil para, a partir da reconstitu­ição do passado, explicar o agora.

O Último Tiro da Guanabara é o terceiro livro de Bruna Meneguetti, vencedor de edital da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. É publicado pela Reformatór­io, editora que, desde 2013, se dedica à literatura contemporâ­nea brasileira, abrigando livros de contos, poesia e romances, dando guarida a autores menos conhecidos ou a obras mais experiment­ais, perfazendo o papel fundamenta­l de incentivar a semeadura de formas menos prováveis na literatura brasileira. O novo livro de Meneguetti é um exemplo dos caminhos viáveis por onde nossa prosa pode ainda vaguear.

‘O Último Tiro na Guanabara’, da autora Bruna Meneguetti, narra tentativa verídica de golpe a JK, em texto híbrido amalgamado ao fantástico

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VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO Mescla. Rigor histórico e liberdade na ficção
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O ÚLTIMO TIRO DA GUANABARAA­UTORA:BRUNA MENEGUETTI­EDITORA: REFORMATÓR­IO 304 PÁGINASR$ 40
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