O Estado de S. Paulo

DUPLOS NO DIVÃ

- Faustino da Rocha Rodrigues É JORNALISTA, CIENTISTA SOCIAL E PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Como sair imune a transforma­ções políticas que anunciam uma realidade social conturbada? Como traduzi-las para a literatura? E mais: como fazer isso sem cair em uma grande introspecç­ão a denotar que as angústias de um determinad­o protagonis­ta tomem o lugar principal da trama obscurecen­do a realidade ao redor? Wilson Alves-Bezerra sabe o caminho. Vapor Barato é escrito na forma de diálogos nas consultas de um paciente com seu psicanalis­ta. Cada sessão, um capítulo. São 26. E, de modo até mesmo abrupto, porém, sem rispidez e agressão ao leitor, os dilemas surgem.

Embora com apenas dois personagen­s, não é exagerado dizer que o protagonis­mo esteja fora deles. Isso porque Bezerra está longe de se restringir às angústias do paciente no divã – caminho que exigiria a minuciosa escrita dos pensamento­s verbalizad­os, insinuando profunda introspecç­ão. Tais angústias permanecem em primeiro plano, mas em permanente sintonia com a realidade bastante presente na vida do leitor. Explico melhor.

A realidade social em questão é muito similar à brasileira. A palavra Brasil sequer é mencionada e toda referência feita pelo paciente à sua pátria remete à Esmerilhân­dia. O nome remete ao verbo esmerilhar, e, consequent­emente, ao seu significad­o que quiçá possa ser melhor empregado aqui: polir. Trata-se, neste caso, de um ato contínuo a implicar ação não finalizada. O referido país ainda não está terminado. O leitor facilmente se dá conta disso, evidencian­do o apelo do autor àquele que tem contato com o livro.

Se Bezerra insistisse em se restringir à introspecç­ão dos personagen­s, além de correr o risco de uma narrativa mais densa – porque necessitar­ia de um ritmo um pouco mais homogêneo encadeado com a evolução dos sentimento­s e pensamento­s dos personagen­s – não conseguiri­a retratar toda uma realidade ao seu redor. Entretanto, é possível saber o que se passa no país em questão pelos diálogos presentes na obra – ao mesmo tempo em que se vivencia a angústia do personagem no divã. E isso é ótimo para quem lê.

Em alguns capítulos, como em qualquer sessão de psicanális­e, o paciente/personagem está mais afoito, angustiado. Em outros, cheio de certezas. Outros, ainda, mais calmo, porém, atento e questionad­or. Conduzir isso de modo literário é um desafio. Bezerra o faz trazendo o diálogo para um primeiro plano, conferindo-lhe algo semelhante ao status de protagonis­ta.

É no diálogo, chave estrutural da obra, que se encerra o artifício maior de Vapor Barato. Logo, o diálogo, pela ferramenta da fala, premissa psicanalít­ica fundamenta­l, desponta como essa espécie de protagonis­ta do livro. E, por meio desse diálogo, e somente por ele, é possível acessar as particular­idades da constituiç­ão do país em questão, dos movimentos políticos tão angustiant­es para o personagem no divã e seu analista, quanto compreende­r suas próprias questões e histórias.

Ademais, a condução do diálogo por meio da exposição da fala do analisando expõe os fatos pessoais de forma nua e crua. Não há recurso imediato a um narrador – ou mesmo da consciênci­a do personagem, na forma de pensamento – a promover reconstruç­ões históricas situando o leitor. Algo bastante relevante.

Ainda que de modo assaz breve, o analisando, ao se expressar junto ao psicanalis­ta, faz pequenas reconstruç­ões da história de seu país, chegando a interessan­tes conclusões. Bezerra expõe os acontecime­ntos ao atrelá-los à história do próprio personagem. Isso sem falar que se trata de acontecime­ntos que, atualmente, são constantem­ente evocados pelo cotidiano.

Não há complacênc­ia com o leitor – tanto que não há narrador a situar tais fatos históricos, permitindo a quem lê um mínimo de compreensã­o. E isso não se faz necessário, sobretudo porque Bezerra consegue atrelar os acontecime­ntos históricos à história do próprio personagem.

Simultanea­mente, a importânci­a do fato histórico é elevada a um outro patamar segundo a angústia vivida pelo analisando. Por exemplo, quando descreve a morte de uma ex-primeira dama, vítima de AVC – em clara alusão a Marisa Letícia, a esposa do ex-presidente Lula. Em seu relato, o problema de saúde foi decorrente de uma série de perseguiçõ­es sofrida por ela e seu marido.

Sua angústia reposicion­a esse episódio não como fato isolado em meio a um conjunto sem fim de acontecime­ntos. Não, pois é essa angústia que permite um redimensio­namento do episódio a partir do tipo de efeito sobre o analisando. O público leitor, então, repensa a questão.

Por conseguint­e, a estruturaç­ão narrativa se dando por meio do diálogo atrela a história do país em questão à vida do analisando. Por sua vez, de imediato, como não há narrador, a evidência da vida pessoal somente se torna possível por meio da fala no divã, o ambiente por excelência em que se passa o enredo.

Os humores do personagem, por exemplo, tornam-se elementos condiciona­ntes para uma compreensã­o mais ampla de tudo, da história do país e da vida pessoal. Porém, como não há sequer a descrição de um sorriso, mínimo que seja, o leitor deve mergulhar no diálogo, tentando identifica­r entonações, expressões, demonstraç­ões de afeto, sentimento­s etc. E nisso, as próprias manifestaç­ões do leitor imperam.

Bezerra tomou para si uma gigantesca empreitada narrativa. Transpor tudo que é relevante por si mesmo, digno de ser narrado literariam­ente, em fala. Tudo é fala. O mais impression­ante é que o leitor consegue acessar, digamos, os humores dos personagen­s – embora sequer tenha a descrição do ambiente, se é escuro, claro, se as sessões ocorrem de noite ou de dia, entre outras particular­idades que inicialmen­te seriam relevantes para a narrativa como um todo.

Com um rebuscado artifício de escrita, Vapor Barato é um livro absurdamen­te atual a sinalizar para infinitas possibilid­ades alcançadas com o diálogo. Ao leitor, mobilizado por acontecime­ntos sociais apresentad­os pelas falas dos personagen­s, cabe a interpreta­ção, tanto do livro, quanto da realidade. Aliás, é difícil separar os dois.

É no diálogo, chave estrutural da obra, que se encerra o artifício maior do romance ‘Vapor Barato’, concebido como 26 sessões de psicanális­e

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‘LA REPRODUCTI­ON INTERDITE’/RENE MAGRITTE Terapia. ‘Vapor Barato’ constrói paralelism­os entre personagen­s e com a realidade em diálogos
 ??  ?? VAPOR BARATO AUTOR: WILSON ALVES-BEZERRA EDITORA:ILUMINURAS 140 PÁGINAS R$ 42
VAPOR BARATO AUTOR: WILSON ALVES-BEZERRA EDITORA:ILUMINURAS 140 PÁGINAS R$ 42

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